A Casa de Poeira - 8° Capítulo
- Leo Marcorin
- Feb 8, 2023
- 16 min read

O Sonho
Marcos
QUANDO MARCOS OUVIU OS GRITOS DE DESESPERO DE MIRIDIANA, ele derrubou Stefano no chão e correu para fora. Como numa tempestade, havia poeira por toda parte, e Marcos mal podia enxergar, só ouvir. Miridiana apontou em direção àestrada, mas Marcos via apenas o caminhão de Tonho que tinha derrapado para fora dela. Seu motor soltava fumaça preta e o cheiro de pastilha de freio queimada era insuportável.
Marcos temeu pelo pior, então ele correu em direção à nuvem de poeira, porém, não podia ver nada, e seus pulmões doíam toda vez que respirava. Ao final, ele cobriu os olhos com a mão e gritou:
“João? Cá?”- mas ninguém respondeu.
Finalmente, Marcos pode ver João ajoelhado na estrada.
“João, você está…?”
O irmão mais velho não respondia, então Marcos se aproximou e tocou-lhe o ombro. Foi quando ele constatou o que se passara.
Cá estava deitada na estrada, coberta de sangue.
O coração de Marcos parou, e ele mal sentiu o chão em que desmoronou.
Alguém chorava nas proximidades. Era Tonho, coberto de sujeira e lágrimas, murmurando desesperado:
“Me desculpe. Meu Deus, me desculpe!”.
Marcos tentou ressuscitá-la, mas parou quando sentiu suas costelas se movendo. Tudo estava quebrado e sangue corria para fora de sua boca, nariz, orelhas e olhos. Cá não tinha pulso ou respiração.
Seus olhos sem vida ainda estavam abertos.
Aqueles olhos, aquela cena… tudo era muito familiar. Inconscientemente, ele se ajoelhou e começou a murmurar... “Samanta”, tocando delicadamente o rosto da menina, temendo, ao mesmo tempo, quebrá-la ainda mais com seu toque.
Miridiana veio e ajoelhou-se ao lado da filha, abraçando-a desesperadamente:
“Minha filha! Oh, minha querida criança!”.
Tonho era um furacão de orações e desculpas, andando em círculos e balançando os braços.
A poeira finalmente baixou e Marcos pode ver a multidão de olhos em volta do corpo da menina. José Feit e os mineiros vieram, seguidos pelo Cão negro, que se deitou ao lado de Cá e uivava um som arrepiante para a Lua.
O farol do caminhão lançava uma luz amarela no ar empoeirado, fazendo tudo parecer um pesadelo.
“Vou atrás do Padre!” - Tonho finalmente pulou de volta no caminhão e saiu, levando com ele a única luz que iluminava a menina. Depois disso, tudo ficou escuro, exceto pelos holofotes na varanda. Marcos olhou para o Cão e, mais tarde, poderia jurar que a besta tinha quatro olhos amarelos.
Miridiana tentou levar a filha para dentro, mas ela estava muito fraca para levantá-la, então Marcos o fez. A maioria das pessoas os seguiu. Stefano ainda sangrava e reclamava na casa, mal entendendo o que Marcos trazia em seus braços.
Marcos levou Cá para o quarto de Miridiana, colocando-a ao lado de seu pai. José Feit gritou algo no corredor, e os mineiros finalmente pararam de segui-los. Ainda assim, um deles reclamou:
“E o Stefano? Ele tá ferido!”
“Saiam daqui, seus idiotas!” - Feit repetiu.
Depois de alguns minutos, o Padre chegou. Segundo ele, Tonho tinha voltado ao posto de gasolina para não causar mais dor a Miridiana. No início, ele olhou para a menina, mas mal a tocou, orou, e desceu para cuidar de Stefano. Após longos minutos, estava de volta, examinando a garota novamente uma última vez, só para ter certeza. O Padre pegou Marcos pelo braço e o arrastou para fora, dizendo:
“Meu filho, dê privacidade a esta família e vá esperar em outro lugar.” - fechando a porta em seu rosto.
Marcos desceu as escadas e enfrentou os olhares na sala de estar. A Sombra estava na cozinha escura. Lilian e Feit sentavam-se no mesmo sofá com as mãos entrelaçadas, enquanto o Cão aguardava no canto da lareira com a cabeça apoiada em suas patas, choramingando. Marcos percebeu ser a primeira vez que via Lilian desde o café da manhã, mas mesmo essa memória parecia embaralhada pela dor.
“Como está a garota?” - Lilian perguntou ansiosamente.
“Cá está…” - a voz de Marcos rachou, e ele pensou que explodiria em lágrimas por um momento. Felizmente, ele viu os mineiros ainda os observando como um bando de abutres na varanda. Marcos viu tudo vermelho, e gritou:
“Vocês são surdos? Saiam daqui!”
“Mas o Padre disse que eu…” - Stefano disse, mas Marcos o interrompeu:
“Foda-se o Padre! Agora, saia daqui!
Marcos fechou a porta em suas caras e deslizou na parede da cozinha, lentamente sentando-se ao chão, desolado.
A casa estava em silêncio até que a Sombra falou, tão perto do ouvido de Marcos que ele sentiu uma brisa fria:
“Pelo menos não é sua culpa desta vez.”
“Cale a boca!” - Marcos respondeu sem perceber estar falando com sua alucinação.
“O que você disse?” - Lilian perguntou.
“Nada, me desculpe. Estou cansado e sem fazer sentido.” - Marcos respondeu.
“Você parece um louco, sabia?” - a Sombra zombou.
O silêncio tomou conta novamente. Marcos tentava entender o que acabara de acontecer e notou estar faltando uma pessoa naquela sala:
“Onde está João?” - Marcos perguntou.
Ao ouvir o nome de João, Feit se levantou e saiu, batendo firme contra o chão com suas botas pesadas, entrando em uma das portas do corredor, provavelmente seu quarto, trancando a porta com um estrondo.
Por fim, Lilian respondeu:
“João está lá fora. Eu vou ver a Miri, e você vai atrás do seu irmão.”
Marcos estava sozinho com a Sombra.
“Seria bom se tivéssemos algumas drogas por aqui, certo, Marcos?” - a Sombra disse.
Marcos não respondeu, mas concordou mentalmente, contando os cigarros que ainda tinha no bolso.
“Isso é estranho… Eu tinha um pacote novo esta manhã. Fumei 18 cigarros hoje? É melhor eu salvar estes dois últimos.”
Marcos limpou as lágrimas e saiu para procurar por João, imaginando que seu irmão já tivesse deixado a fazenda. Lilian estava certa, João estava congelado na mesma posição desde o acidente, ajoelhado em uma poça de sangue e sujeira. Ele estava em choque, seu pescoço estava duro, e seus braços pendurados em seus ombros como dois sacos de areia.
“João, você está bem?”
Não havia resposta.
“Deveríamos entrar. Está muito frio aqui.” - Marcos sugeriu.
“Eu não quero.” - João respondeu sem se mexer.
Eles permaneceram em silêncio por um longo tempo até que João finalmente moveu os braços, apoiando as mãos em seu colo, dizendo:
“Quantas vezes eu os vi morrer? Você não está cansado de tudo isso?”
“Não há nada que possamos fazer.” - Marcos disse.
“Prometi não me importar depois da primeira vez.” - João disse.
Marcos não conseguia entender seu irmão e estava muito cansado para discutir. Por fim, ele pegou um cigarro do bolso e o acendeu, encarando a poça de sangue.
“Pode me dar um?” - João perguntou, e Marcos entregou o último cigarro e o isqueiro.
Marcos amassou o maço de cigarro vazio e o jogou no estacionamento, atingindo a roda dianteira do Jaguar.
A Sombra estava no carro, piscando seus quatro olhos amarelos.
Os irmãos Rodrigues fumaram em silêncio por um tempo. João olhava para suas mãos trêmulas e Marcos, para a poça de sangue. Finalmente, João disse:
“Falhei novamente. Eu a deixei morrer.”
“Você não tem culpa. Foi um acidente.” - Marcos disse.
“Como foi o acidente?” - João perguntou.
“Como o quê?”
“Como o pai morreu? Você se lembra? A polícia disse que você desmaiou, então eu nunca soube se você se lembrava daquela noite.”
Marcos suspirou e limpou suas lágrimas:
“Sim, mas foi tudo muito confuso. Primeiro, a caminhonete capotou, e eu estava desorientado. Então, o pai tentou me alcançar, mas eu estava na janela do passageiro e aquele lado da caminhonete estava no chão. Ele ficava dizendo, tudo vai ficar bem, campeão. Finalmente, eu vi… ah, meu Deus, é tudo culpa minha…” - Marcos fez uma pausa, ofegante, sentindo como se estivesse de volta à noite em que seu pai morrera, como se tudo acontecesse, novamente, diante de seus olhos. “Eu estava… Quero dizer, ele estava. Meu Deus!”
João estava em silêncio, esperando pelo resto da história. Marcos tentou retomar a narrativa algumas vezes, sem resultado. Ele levou um minuto, talvez cinco, dez, ou até mesmo uma hora. Finalmente, disse:
“O Pai me disse que eu ficaria bem, mas vi um farol vindo da estrada, brilhando contra o rosto dele e…”
Era difícil continuar. Marcos sentia como se seu coração estivesse batendo em sua mão, então levantou-se e andou em círculos, segurando sua respiração, lutando contra seus fantasmas. Ele só parou de se mover e chorar quando João tocou seu ombro e disse:
“Está tudo bem, cara. Eu te perdoei anos atrás.”
Marcos contou até dez, respirou e desabafou:
“O rosto do pai estava ficando mais brilhante pelos faróis, mas ele não percebeu. Então, quando ele finalmente viu a luz, eu vi que seus olhos mudaram. Primeiro, estavam cheios de esperança por me ajudar, depois, confusos e, finalmente, desesperados. Ele sabia que um caminhão estava vindo e que ele estava preso na janela. Não havia nada que pudesse fazer naquele momento, então ele… quero dizer, ele disse...”
As palavras de Paulo antes de morrer eram a parte mais dolorosa daquela memória. Marcos não conseguia dizê-las em voz alta.
“Marcos, relaxa. Você já disse o suficiente.”
Era a primeira vez que Marcos contava aquela história para alguém, pois nem mesmo os psiquiatras ou a polícia sabia. Para eles, Marcos disse que esteve inconsciente o tempo todo, amedrontado, achando que eles o culpariam ainda mais pelo acidente. Ninguém culpava Marcos mais do que ele próprio.
O momento foi interrompido por vozes vindas da varanda. Padre Octaviano e Lilian conversavam, mas estavam muito longe para que Marcos pudesse ouvi-los. Era tarde, então Marcos e João se levantaram, limparam as lágrimas e caminharam em direção à casa.
Quando o Padre os viu, ele disse e saiu:
“Filho, esta jovem vai lhes dizer o que precisam saber. Acordarei o coveiro e vou começar os preparativos. Até mais.”
Quando ele se foi, Lili disse, magoada:
“Miri quer ficar sozinha. Gilberto também está morto. Se ocêis quiserem ir, meu pai está esperando no posto de gasolina. Podem pegar a estrada ainda hoje à noite, como ocê tem insistido, João.”
“Vamos ficar pra ajudar.” - João disse, e pela primeira vez, Marcos sentiu que era verdadeiro. Talvez João não fosse um completo egoísta, afinal.
“Muito bem! Não há mais nada a se fazer essa noite. Cêis deveriam ir dormir.”
Os irmãos arrastaram seus pés cansados para cima. No quarto, Marcos viu a bagunça que João fizera, mas ele não tinha energia para limpar ou discutir, desabando na cama, cheio de poeira e lama. João fez o mesmo.
No escuro, o silêncio reinava, até João falar, um gemido baixo e triste:
“Você está acordado?”
“Sim.” - Marcos respondeu.
“Sinto muito por ser um idiota desde que começamos essa vi… bem, desde sempre.”
“Certo”.
“Mamãe me disse que te perdoou.” - João disse.
“Quando você falou com ela?” - Marcos perguntou.
“Ela disse na carta.”
Mais uma vez, o silêncio encheu a sala como um lençol curto demais, incapaz de cobrir a cabeça, os pés e a tensão crescente. Havia culpa, ansiedade e tristeza no ar. Então, finalmente, João quebrou o silêncio novamente:
“Entendo você. Quero dizer, o que você fez a vida toda para esquecer o acidente do pai. Eu não deveria ter dito para você morrer quando você teve a overdose. Você é meu irmão. É claro que eu não queria que você morresse.”
“Obrigado.” - Marcos sempre imaginou seu irmão se desculpando, mas, naquele momento, estava magoado demais para se sentir bem.
“Desculpe pelo meu comportamento nestas últimas semanas. Estou surtando com meu julgamento. Eu fui injustamente acusado. Eu não consigo me imaginar em um tribunal me defendendo como se fosse um mero criminoso.
“Você quer falar sobre isso?” - Marcos perguntou.
“Talvez, mas não agora. Eu só… sinto muito por não visitar a mãe. Eu realmente sinto, e eu prometo existir uma razão para isso.” - João disse.
Eram palavras muito cruéis e Marcos não se sentia tão cheio de perdão quando o assunto era sua mãe. Marcos tinha se acostumado com João lhe tratando como lixo; com isso, sua pele se tornara grossa como pedra e suas agulhas não mais penetravam. Ainda assim, o que João havia feito com Hera não era fácil de ignorar; na verdade, era completamente imperdoável. Se João tinha uma razão para não estar com ela, ele escolheu não estar. O que era tão importante, para fazer um filho ignorar sua mãe moribunda? João devia desculpas a ela, não a Marcos, mas Hera estava morta e jamais as receberia.
Marcos estava se enfurecendo, mas preferiu se acalmar. Era tarde demais e ele se sentia muito cansado para continuar aquela conversa sem sentido.
As memórias da morte de seu pai voltaram e Marcos sentiu-se melancólico. Por fim, ele sentiu a necessidade de falar, e João parecia ser um bom ouvinte naquele momento. Demorou um pouco para pensar o que falar, mas finalmente, Marcos disse:
“Você quer saber o que o pai disse antes de morrer? Ele disse: Segura aí, campeão, que as coisas vão balançar um pouco.”
João não respondeu, apenas roncou. Ele já havia dormido há muito tempo.
“Filho da puta!” - Marcos sussurrou, mas João apenas roncou de volta.
Marcos não conseguia dormir. As horas se passaram e logo o amanhecer rosado bateu na janela, um lembrete sombrio de que Marcos estaria morto de cansaço no dia seguinte.
Memórias e mais memórias vieram e se foram de sua mente, como um gato perseguindo um ponto de laser. À certa altura da noite, Marcos enfureceu-se com João de novo. Sociopata do caralho! Como ele pode dormir como uma pedra, tão despreocupado, em tais circunstâncias?
O que devo fazer agora? Não posso deixar Miridiana sozinha, mas o porquê de eu querer ficar está morto.
Tem também o Padre e Stefano. O Padre Octaviano parece proteger Miridiana, mas de alguma forma sinto que ele esteve envolvido na morte de Gil.
Stefano provavelmente ficará com a propriedade dos Sylvesters. Seus motivos eram mais óbvios, mas quais eram os do Padre?
A cidade de Esperança era controlada pelo Padre e pelos mineiros. O que Marcos poderia fazer sozinho?
De qualquer forma, a fazenda não era problema dele, e Feit e Lilian poderiam se preocupar com isso.
Cá estava morta. Não havia nada que Marcos pudesse fazer. Suas ilusões de ter uma meia-irmã se foram. Gilberto se foi. Não havia mais ninguém para defender.
Era hora de tocar em frente, como João costumava dizer.
Finalmente, Marcos dormiu, ouvindo a voz de Cá em seus sonhos.
Como em todas as noites anteriores, Marcos teve um pesadelo e sentiu uma pressão anormal sobre o peito. A Sombra estava em seus sonhos, como sempre. Ela se sentou na cadeira de um juiz, em um tribunal sem fim, vestindo as roupas do Padre, encarando a todos com seus dois pares de olhos amarelos e famintos. Desta vez, também tinha uma boca gigantesca. A Sombra batia, enérgica, seu martelo no palanque, gritando e rindo:
“Desordem no tribunal!”
Ao lado de Marcos, no banco de defesa, sentava-se sua irmã, Samanta, vestida em um macacão de fazendeira, usando tranças no cabelo.
A corte estava lotada. O júri era uma mistura de conhecidos antigos e os beatos de Esperança, todos com os olhos vazios dos cristãos na noite anterior, incluindo Ignácio e Virgílio; o oncologista de Hera; a chefe de Marcos, Suzana; a ex-mulher de João, Amanda; e o traficante fornecedor de Marcos.
Muitas pessoas assistiam ao julgamento: Hera, vestindo a roupa de Miridiana, sentada ao lado do Cão; Lilian; José Feit; vários mineiros; Tonho e muitos outros olhos vazios de Esperança.
Stefano era o escriturário e clones dele guardavam as entradas. Marcos sabia haver outro clone de Stefano debaixo do capuz do carrasco.
João, em seu melhor terno, estava à frente do banco do promotor. Paulo sentou-se bem atrás dele, vestido com o macacão de Gilberto, sem camisa, como na primeira vez que o conheceram, com apenas uma das alças segurando a roupa no lugar.
“DESORDEM NO TRIBUNAL! Tragam a primeira testemunha! - a Sombra gritou e riu, com sua boca gigantesca. O som de seu martelo machucava o cérebro de Marcos.
A primeira testemunha era o Padre Octaviano, que se parecia, estranhamente, com o Juiz Sombra:
“Aquela garotinha ali? Ela é uma bruxa do pior tipo. Uma puta sorrateira do diabo. Por causa dela e de sua mãe, minha igreja foi incendiada. Por causa dela, meu rebanho está aguardando redenção no fogo do inferno!”
Samanta chorou em silêncio, repetindo:
“É mentira! Eu não nasci ainda!”
“Objeção, meritíssimo! A menina nem havia nascido…” - Marcos dizia.
“Negado. Tragam a mãe do menino!”
Em pé, no banco do júri, mal segurando o choro, a mãe de Duda falou:
“A menina planeja nossa desgraça, eu digo a todos. Ela pôs fogo na igreja! Ela matou meu marido no incêndio e meus pobres filhos na construção, ela os matou! Por causa dela, Duda, o caçador, está morto pelo sobrenatural, e ele não pode mais ir pro céu. Está preso na Casa da Poeira! Ela é uma bruxa, ela é!”
A multidão assoviava e vaiava.
Entre o som de sua máquina de escrever, Stefano ria alto e cruelmente.
“Objeção, meritíssimo. Meu cliente nem estava na construção quando aconteceu. O Padre que insistiu…” - Marcos disse.
“Anulado. Traga a garota Grávida!”
A garota Grávida veio, a mesma que Marcos vira na missa, mas coberta de sangue. Ela segurava um feto morto em seus braços e seus olhos eram dois abismos, buracos negros derramando lágrimas de sangue:
“Cortesã do diabo. Por causa dela eles me abandonaram no poço, mas ela não sabia que eu ainda estava viva! Andei pelos infernais túneis negros por horas, horas e horas. Andando e gritando, mas ninguém veio me salvar. Finalmente, encontrei meu filho morto em uma pilha de cadáveres!” - a garota Grávida mostrou o bebê morto em seus braços e todos vaiaram - “Ela pegou meus olhos também, minha alma. Finalmente, eu não podia viver mais, então eu desisti. Dizem que deixei Esperança, mas eles mentem! Eles levaram nossos olhos, nossa alma, um tributo a ela, a Diaba. Queimem a bruxa!”
Uma luz amarela brilhava dentro de seus olhos de buraco negro quando ela terminou de falar.
A multidão se levantou e gritou. Marcos falou sobre as injustiças daquele tribunal, mas a algazarra da multidão era muito mais alta.
O martelo bateu novamente:
“DESORDEM, DESORDEM! Levantem-se todos.”
“Meritíssimo, você ouviu o meu…” - Marcos disse.
“Silêncio! O júri falou e a cadela do Diabo é culpada!
A multidão gritou ainda mais alto.
Marcos chamava pelo irmão:
“João! Eu não sou advogado, então este julgamento é inválido, certo? Por que você não está me ajudando? A Sa é inocente!”
“A Sa é inocente? Por favor!” - João riu com desdém.
Toda a corte riu.
“NÃO! Ouçam-me, juiz… Sr. Sombra! Você me quer, não é? Você quer que eu tenha uma overdose. É por isso que você continua me mandando usar heroína. Me dê tudo, aqui e agora, vou me matar na sua frente, mas ,por favor, deixe minha irmã ir!
“Mas você não pode barganhar o que não é seu! Sua alma já é minha! Sempre foi minha, desde o momento em que você nasceu!”
Marcos sentiu seus olhos derretendo com aquelas palavras. Ele colocou as mãos no rosto e viu o sangue misturado a um líquido branco.
“Queimem a bruxa!” - a Sombra gritou.
Sá estava chorando.
“Não! Vocês não podem fazer isso!”
“Você está certo! Que estúpido da minha parte! Não podemos queimar a garota: ela é o Diabo. Ela morrerá por atropelamento, como toda vez. Tragam o caminhão!”
“NÃO!”
“E tire essa merda de drogado da minha frente. Sentencio Marcos Rodrigues a morrer sozinho, por overdose! Tragam a heroína!”
Os mineiros e a versão Carrasco de Stefano imobilizaram Marcos, cutucando-o com mil agulhas e injetando o conhecido suco doce da heroína, porém, a sensação adorável tornara-se dor, quente como fogo! Parecia chumbo entrando em sua veia. A gravidade empurrou seu corpo pesado para baixo, seu rosto estava preso ao piso frio da cozinha. Marcos não podia mover-se, nem falar.
Sá gritou, e todos riram:
“Matem a bruxa!”
“Sou líder agora! Sou carrasco também!” - Stefano elogiava a si mesmo.
A Sombra cresceu cada vez mais até cobrir o tribunal em escuridão, um vazio negro, deixando apenas seus olhos amarelos na cadeira do juiz, olhando fixamente para Marcos. Finalmente, ele falou com uma voz colossal:
“Pelo poder concebido a mim por este tribunal, eu sentencio Samanta Rodrigues à morte! Matem-na com o caminhão!”
O carrasco arrastou Samanta para uma parede branca manchada de sangue.
A Sombra abriu sua boca pútrida e, de dentro dela, um caminhão gigante apareceu.
Samanta gritava.
Marcos podia ouvir os touros chorando, apesar de não haver animal algum ao redor.
No segundo antes de o caminhão atingir Samanta, Marcos viu Cá Sylvester assistindo à execução no meio da multidão, vestindo as roupas de sua irmã e rindo.
Marcos pulou da cama encharcado em suor, enjoado e ofegante.
Passaram-se longos minutos até ele entender onde estava. O quarto estava quente e claro pela luz do sol, como um forno.
“Você está bem?” - João perguntou, preocupado.
Marcos não estava. Pelo contrário, ele sentiu nojo ao ver seu irmão e lembrar que ele era o promotor que condenara Samanta em seus sonhos.
Por fim, todo o trauma veio para sua boca e Marcos vomitou tudo que tinha dentro: bile. João pulou como um gato para longe do jato, fugindo do respingo verde-amarelado.
“Puta que pariu, Marcos!” - João correu para o guarda-roupas e pegou algumas toalhas limpas, jogando-as sobre o vômito.
Mesmo sem permissão, pegou uma garrafa de água e uma barra de cereal da mochila de Marcos e entregou-as ao irmão, dizendo.
“O que há de errado com você? Aqui, coma isso; você vai se sentir melhor. “
Marcos não podia responder, não que ele não quisesse, mas a dor no seu peito era tão forte que ele simplesmente não conseguia falar.
Finalmente, Marcos melhorou. João sentou-se à sua frente e perguntou, preocupado:
“Você está bem?”
“Não. Há quanto tempo você está acordado?” - Marcos perguntou, sentindo a cor voltar ao seu rosto.
“Há um tempo.” - João respondeu.
Marcos olhou em volta, esperando ver a bagunça que seu irmão fizera na noite anterior, mas o chão e os móveis estavam limpos, embora as toalhas estivessem cheias de vômito.
João parecia ler a mente de Marcos:
“Também fiquei surpreso. Alguém deve ter limpado enquanto dormíamos. O que fazemos agora?”
Essa era a primeira vez que João pedia a opinião do Marcos.
“Pensei sobre isso durante a noite, e devemos ir embora. Desculpe, mas não consigo falar agora e, por favor, não use a palavra julgamento hoje, ok?” - Marcos disse, lembrando-se dos seus sonhos.
“Você está com raiva de mim pelo meu julgamento?” - João perguntou, confuso.
“Não. Coisa minha. Tive um sonho… ah, esquece isso.”
“Um sonho?”
“Uma merda de pesadelo… Matei todos eles de novo. A culpa é sempre minha.”
“Marcos, foi um acidente. Você mesmo disse.”
“Eu quis dizer o Pai e a Sa.”
João ficou perplexo, nervoso, a feição mudando, totalmente, da preocupação à impaciência:
“Isso de novo? Cara, para de ser idiota! Vamos embora dessa cidade antes que outra pessoa morra!”
O corredor estava bem iluminado por um sol ofuscante. Os irmãos carregavam suas malas escada abaixo, prontos para pegar a estrada. Marcos se sentia fraco, todo dolorido pelo trabalho, a barra de cereal nadando em seu estômago. A dor no peito tornara-se regular e Marcos concluiu ser devido ao colchão fino sobre o qual dormira.
Várias vozes vinham da cozinha e a casa soava estranhamente feliz.
Calmaria. Depois da tempestade., Marcos pensou.
Na sala de estar, Marcos ouviu vozes familiares e, com o coração nas mãos, os irmãos olharam-se, surpresos:
“O que está acontecendo?”.
Marcos foi o primeiro a chegar à cozinha.
“Bom dia, campeão!”
Gilberto estava vivo, em pé na cozinha, preparando-se para o café da manhã.
A boca de Marcos abriu e fechou, mas não emitiu nenhum som.
“Bom dia! Já estão indo, rapazes?” - Miridiana sorria, radiante.
“Mas que porra é essa?” - João perguntou.
“Fiquem pelo menos pro café da manhã. Venham e se sentem.” - Gilberto convidava, sorrindo, sem uma única contusão em seu rosto.
“Gilberto, como você está vivo?” - João se aproximou e começou a cutucar o fazendeiro que, instintivamente, esquivou-se e perguntou:
“Tá louco? O que ocê está fazendo? Conversamos há algumas horas, por que eu não estaria vivo?”
“Sua mão…” - Marcos sussurrou quando olhou a mão de Gilberto puxando o pote de café.
“Do que ocê está falando, campeão?” - perguntou Gilberto, exausto.
“Quero dizer, seus dedos. Você… Você não tem um arranhão! O que está acontecendo?”
“Não estou entendendo ocêis, campeões?”
Marcos olhou para o fazendeiro de cabo a rabo e, para sua surpresa, não havia absolutamente nenhum sinal do acidente. Nem um único arranhão ou contusão. Ele era o mesmo Gilberto que haviam conhecido três dias antes.
Era como se eles tivessem viajado no tempo.
“Como você…? Sua mão… Seus dedos… Seus dedos de bênção, eles estavam no pacote de cigarros, depois do… O acidente… A igreja.”
Miridiana descansou as mãos no ombro de Gilberto e olhou para Marcos como se ele fosse um louco.
Marcos continuou murmurando:
“Estou sonhando. Ainda estou sonhando. A Sombra de quatro olhos amarelos… Essa é minha punição. Eles me drogaram no chão da cozinha. Onde está o Juiz Sombra?”
João também estava exausto e confuso. Sua boca abria e fechava, mas ele não conseguia expressar uma palavra.
Tudo começou a girar. Marcos recuou de volta para a sala de estar, tocando tudo para não cair. Era como se uma mão imaginária girasse sua cabeça.
“Eu não consigo respirar.” - Marcos engasgou-se, e a pressão em seu peito tornou-se insuportável.
“Marcos!”- João gritou e correu para ajudar o irmão, mas ele explodiu quando sentiu o toque dos dedos.
“Não! Ninguém me toca!”.
O irmão mais novo correu para fora da casa e foi cegado pela luz do sol.
“O que está acontecendo?” - Lilian perguntou. Ela e Feit se sentavam nas cadeiras da varanda, mas se levantaram quando viram o visitante louco gemendo no quintal.
“Ele está bem?” - Lilian perguntou.
Marcos andou sem direção pelo quintal, não conseguindo suportar o peso da própria dor. Ele mal sentiu o chão batendo em seu rosto ou o cheiro da terra úmida da manhã. O chumbo pesado estava em sua veia, e Marcos não podia mover-se, amarrado ao chão pela gravidade.
Como no sonho, Marcos estava cercado por rostos sombrios bloqueando o sol. Ele olhou para baixo da varanda e viu a Sombra encarando-o da janela do porão.
De repente, o mundo parou de girar. Marcos ouviu uma menina rindo em algum lugar à sua direita. Cá estava brincando com o Cão gigante até que parou de rir e olhou diretamente para ele, curiosa sobre o que os adultos estavam fazendo.
Ela está viva! Então esse é outro sonho!
Marcos, ainda ao chão, olhava para cima, observando as muitas cabeças que lhe observavam, lançando uma sombra contra o sol. Primeiro João; depois, seu pai; sua mãe; a ex-mulher de João, Amanda; e sua própria chefe, Susana. Família e amigosestavam preocupados e com pena dele.
Uma Sombra final formou-se acima deles, rindo com seus olhos amarelos brilhantes.
Marcos então desmaiou.
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