A Casa de Poeira - 6° Capítulo
- Leo Marcorin

- Jan 25, 2023
- 20 min read

A Missa
João
“Encontrei! Olha o sangue!” - gritou um dos ADOlescentes, cujo nome João não conseguia lembrar.
Realmente, a mancha nas vigas de madeira era sangue, e não um reflexo do sol vermelho ao crepúsculo. A piscina escarlate sinalizava a tragédia debaixo dos escombros.
Marcos e Feit limparam os escombros com as mãos nuas até encontrarem o garoto mais velho, Duda, coberto de sangue e poeira, mal respirando. Apenas seu tronco e cabeça eram visíveis.
“Duda!” - o irmão do garoto gritou, tentando alcançá-lo, porém, Marcos agarrou-o e gritou:
“João, tire o Ignácio daqui!”
“É o Virgílio,” - disse Feit.
“Sim, tire o Virgílio daqui também.” - Marcos disse.
“Eu quis dizer que o garoto que ocê está segurando se chama…”
“Tire todos eles daqui, agora!” - Marcos encerrou a conversa.
João levou os dois adolescentes para o Padre, que ainda orava no quintal. Quando viu João, o sacerdote perguntou:
“Quem vocês encontraram?”
“Não fique parado aí, rezando que nem bobo! Chame a emergência, imediatamente. O irmão desses meninos está gravemente ferido.” - João ordenou.
“Não há telefone na cidade, e eu sou a coisa mais próxima de um médico na cidade.” - Padre Octaviano disse.
“O que você está esperando então?” - João latiu.
João deixou as crianças com Stefano, que não tinha muito interesse em ajudar na busca.
O Padre tentou escalar os destroços, mas sendo um velho frágil, precisou da ajuda de João. Provavelmente devido ao choque, ele - o Padre - tinha uma mão fria como pedra.
No começo, o Padre não sabia o que fazer. Ele se ajoelhou ao lado do menino e observou: Duda respirava irregularmente, seus olhos estavam abertos enquanto lágrimas dolorosas rolavam pelo rosto sujo. Marcos e Feit ainda removiam o lixo de cima do garoto, portanto, apenas quando retiraram a maior viga de cima dele é que perceberam o quanto Duda estava condenado.
“Meu Deus!” - João disse.
O menino estava morto; ele só não havia percebido ainda.
A cabeça de Duda estava rachada debaixo de todo o sangue e cabelos, e seu peito estava afundado. Era possível ver a lasca das costelas quase cortando a pele por dentro. Havia sangue por toda parte, principalmente vindo da boca dele.
“Deus nos ajude!” - O Padre disse.
“Você não é um médico? Faça alguma coisa!” - Marcos gritou.
“Meu filho, esse menino já tá morto. Ele só não sabe ainda.” - O Padre respondeu e virou a cabeça para orar.
“Achei o Gil!” - Feit gritou. Por um momento, Marcos estava dividido entre lamentar a condição do menino e ajudar Gil, olhando para frente e para trás. Finalmente, algo ‘clicou’ em sua mente, e ele correu para ajudar José, deixando João e o Padre com o menino moribundo.
O garoto tentava desesperadamente respirar, porém, era sufocado pelo próprio sangue. João não sabia o que fazer, então ele se ajoelhou e, ao segurar as mãos minúsculas do garoto, notou que ele perdera três dedos no acidente. Ele queria poder dizer algo, contudo, antes de pensar nas palavras de encorajamento, a última lágrima rolou dos olhos praticamente sem vida de Duda. E o garoto morreu.
O advogado de coração frio chorou, ainda segurando a mão do menino, e só parou quando Marcos gritou:
“João! Precisamos de você.”
Eles conseguiram desenterrar Gilberto parcialmente. A cabeça do fazendeiro estava aberta, e o braço direito, todo ensanguentado.
João não conseguia mais segurar. Tudo era demais! A morte do garoto, o fazendeiro entre a vida e a morte… O sangue lembrava-o das vezes em que fora forçado a assistir à tortura dos dissidentes do Deputado. João correu para um canto e vomitou o sanduíche de ovo que havia comido mais cedo.
Meu Deus!
“João, não temos tempo para seus problemas agora. Precisamos de você.” - Marcos disse.
João voltou para ajudar e notou que a Gilberto também faltavam três dedos.
“Mas que…”
Três dedos estavam faltando em ambas as mãos, de Gilberto e de Duda: o indicador, o médio e o polegar. O Padre ajoelhou-se próximo ao corpo, particularmente interessado nos dedos perdidos.
“Ele tem pulso, mas… Seus dedos de bênção!” - Padre Octaviano disse.
“Dedos de bênção?” - Marcos repetiu.
Meu Deus, Gilberto está vivo, o cabra forte! Agora ele pode me ajudar com o combustível, como me prometeu, ou talvez eu possa pedir o combustível para levá-lo ao hospital!
“Feit, encontre Tonho e peça o caminhão e meu kit médico. Leve as crianças para a mãe e explique o que aconteceu. Precisamos levar Gilberto de volta para a fazenda, para eu poder tratá-lo.” - o Padre disse.
“Para a Fazenda? Padre, este homem precisa de um hospital!” - João reagiu.
“O Gilberto não sobreviveria à viagem. Primeiro, ele precisa estabilizar.”
“Mas Padre Octaviano, eu posso levá-lo agora! Consigo chegar no hospital mais próximo como um tiro e dessa forma o Gilberto vai ter o cuidado que ele precisa. Meu Jaguar é rápido, confortável e…”
“Cala a boca, João.” - Marcos disse.
“Mas quero ajudar…” João disse.
“Cara, na boa. Sai fora!”
“Calados os dois. Procurem uma prancha e me ajudem a construir uma maca.” - O Padre latiu.
Feit levou as crianças embora, e João ajudou a construir uma maca, já que a outra opção era remover o corpo do garoto morto, e ele não tinha estômago para aquilo.
Feit voltou rapidamente, de carona no caminhão de Tonho. Havia um carrinho enferrujado acoplado ao engate, onde colocaram Gilberto sobre a maca improvisada, e o corpo de Duda, enrolado em lençóis brancos que Feit trouxera. O Padre e Feit subiram no caminhão e foram embora, deixando Marcos e João para trás, na igreja.
“O que diabos acabou de acontecer? Aquele garoto… cara… Ele tá morto!” - João foi o primeiro a falar.
“João, por favor, pare de tentar tirar vantagem dessas pessoas. O que você estava pensando quando ofereceu levar o Gilberto para o hospital?”. Marcos parecia cansado, assemelhando-se, ainda mais, à caricatura de um profeta.
“Eu só queria ajudar.” - João mentiu.
“Eu vou procurar os dedos do Gil. Talvez o Padre Octaviano possa colocá-los de volta.”. Marcos voltou para as ruínas, algo que João pensou ser completamente inútil.
A noite chegara, e João não conseguia mais distinguir uma pedra de um parafuso. Mesmo assim, Marcos continuou a procurar pelos dedos decepados, arrastando lixo para todos os lados. João observava de longe. Nunca passara pela sua cabeça ajudar seu irmão.
“O barbudinho ali parece ser melhor pessoa que ocê, hein, mariquinha!” - uma voz por trás pegou João de surpresa. Era Stefano, de quem João se esquecera completamente.
O baixinho caminhava em torno de João, ameaçadoramente:
“Eu deixaria a cidade agora, se eu fosse você. Antes que outro acidente aconteça.”
João não sabia o porquê, mas aquelas palavras do baixinho o fizeram arrepiar.
“Vai ser uma merda por essa igreja em pé de novo até semana que vem, hein?” - Stefano disse, e saiu.
Marcos voltou a tempo de ouvir as últimas palavras daquele homem:
“Esquece esse tonto. Encontrei os dedos do Gilberto, mas não encontrei os do Duda. Está muito escuro.” - Marcos disse e mostrou três dedos gordos dentro do seu maço de cigarros, dividindo o espaço com dois cigarros meio fumados e dois “novos”, mas amassados. Os dedos pareciam ter sido cortados por uma lâmina bem afiada.
“Olhe para o polegar.” Marcos disse.
Estava escuro, então levou um tempo até João distinguir o dedão do indicador e do médio. O dedão tinha uma unha curta, esquisita.
“Você está falando da unha curta? O meu dedo também é assim. Não acho nada impressionante.” - João disse.
“Sim, o pai costumava ter um polegar como este também. Mamãe dizia que a única coisa boa em mim era não ter o mesmo polegar do pai.”
“E daí? É um defeito bem comum; já conheci muitas pessoas com o polegar dessa forma, e acho que vi até outra pessoa na fazenda com o mesmo dedo. Não tem nada de mais.”
“Ok, mas que tal Gilberto e Duda terem perdido os mesmos três dedos?”
Após longos minutos, os irmãos voltaram à fazenda. A noite estava escura e estupidamente fria.
Enquanto atravessavam os milharais, João ouviu os touros mugindo em voz alta, e experimentou um déjà vu. Todas as luzes da fazenda estavam acesas, um sinal de que algo estava acontecendo. Uma neblina densa cobriu o ar como um presságio.
João sentia-se exausto, suas mãos, peito e braços estavam cobertos de pequenos cortes e hematomas. Marcos também parecia bem fodido.
A mulher perfeita que João conhecera na igreja os esperava na varanda. Sua voz soava como uma música ligeiramente melancólica:
“Finalmente voltaram. Cêis estão imundos, vão direto para o chuveiro! A missa vai começar em breve, no celeiro.”
“Oi, meu nome é Marcos. Como está Gilberto?”
“Vivo, quase. Padre Octaviano disse que ele talvez não sobreviva à noite. Miri e o Padre estão com ele no quarto. Meu nome é Lilian, mas me chame Lili.”
Até mesmo o nome dela é lindo: Lilian, Lili., João pensou.
“E como está a Cá?” - Marcos perguntou.
“Ela está ajudando o José a preparar a missa; ela sempre gosta de ajudar, mas agora ela tá fazendo pra se desligar do acidente do Pai. O Gilberto ofereceu o celeiro para celebrar a missa desde que a antiga igreja queimou. Cá sabe que ele está machucado, mas não sabe o quanto.”
“Encontrei os dedos do Gilberto. Você pode, por favor, dá-los pro Padre?” - Marcos entregou o maço de cigarro, o qual Lilian não se atreveu a abrir.
Naquele momento, João divagava sobre as possibilidades que teria com aquela mulher. A situação não era ideal, mas já que João não poderia mais sair da cidade naquela noite de qualquer jeito, ele poderia usar o tempo para conhecer Lilian melhor.
“Lilian, não se preocupe. Vamos ficar essa noite e ajudar com qualquer coisa que vocês precisarem.”- João disse, encantadoramente.
A mulher sorriu e guiou-os para dentro da casa.
“Então agora você quer ficar, espertinho?” - Marcos sussurrou.
Depois de um banho rápido, Marcos insistiu em verificar Gilberto, algo a que João se opunha fortemente. Por que ver o cara morrendo, sofrendo? Ainda assim, depois que Marcos disse que Lilian provavelmente admiraria a preocupação, João concordou descaradamente.
O quarto de Gilberto era parecido com o dormitório dos irmãos, mas com uma cama de casal. Gilberto estava deitado, limpo de todo o sangue e poeira, envolto em ataduras. Seu peito mal se movia, e seu rosto estava branco como o lençol.
Miridiana sentava-se ao lado de Gilberto enquanto o Padre assistia da porta, com a vestimenta preta suja de sangue e poeira. Ele bloqueou a passagem, não deixando os irmãos entrarem no quarto, dizendo proteger a privacidade dos fazendeiros.
“Fiz o que pude, mas agora depende de Deus.” - o Padre disse.
“Se você quiser, posso levar ele até o hosp…” - João começou.
“João!” - Mas Marcos interrompeu.
“Vocês deveriam ir andando. Gilberto precisa descansar, não ouvir dois moleques discutindo. Eu preciso ir também, para me preparar para a missa.” - o Padre disse, fechando a porta e tocando os irmãos escada abaixo.
Para a surpresa de João, Tonho esperava na sala de estar, surpreendentemente limpo.
“Achei o caixão, né. Já coloquei o menino no celeiro.”
“Obrigado, Tonho. O caminhão ainda está lá fora? Pode me dar uma carona?” - o Padre olhou para os irmãos com estranha humildade, diferente da arrogância que antes demonstrara:
“Eu assumo a responsabilidade por tudo isso. Obrigado, pois suponho que ficarão para ajudar Miridiana; essas pessoas precisam de vocês agora. Espero vê-los na missa mais tarde.”
O Padre estava saindo com Tonho quando João gritou, impaciente:
“Espera! Entendo tudo isso, mas não posso ficar. Tonho, Gilberto me disse que você tem reservas de combustível para as minas, e eu quero comprá-las ainda hoje à noite. Sinto muito, Padre, mas você mesmo disse ser responsável por isso, não nós. Tenho outros lugares pra estar.”
O Padre abriu e fechou a boca, sem palavras para a ousadia de João. Tonho foi mais rápido, e logo disse:
“Cacete, já disse que não tenho nada! Quantas vezes devo repetir isso, seu imigrante burro?
“Eu não sou um imigrante e Gilberto me disse que você tem reserva, então, por que não para de mentir e me deixa sair dessa cidade?”
“Ah, ele disse? Foda-se!” - o velho respondeu e saiu com o Padre.
João soltava fumaça pelas ventas! Aquelas pessoas o estavam prendendo na cidade de propósito. Uma conspiração. João olhou para Marcos, esperando algum apoio, mas o irmão mais novo bufou e o deixou para trás, sozinho.
Marcos
Marcos cansou-se do narcisismo de João. Como não? Apesar de toda a dor, João só queria flertar com Lilian, e foder com os Sylvesters. Puta cara frio! O filho da puta merece tudo o que está passando.
Barulhos vinham da cozinha, onde Marcos encontrou Cá jantando com Feit. O prato da menina estava intocado. Feit olhava para a parede, comendo em silêncio, quando disse:
“Tem comida no fogão.”
“Obrigado.” - Marcos disse.
Marcos verificou a comida, que parecia ótima, mas fria. Ainda assim, ele fez um prato pequeno e juntou-se a Cá. João entrou logo em seguida, pegando um prato de comida e sentando-se o mais longe possível de Marcos.
“Ocê acha que ele vai sobreviver?” - Cá perguntou, com uma voz chorosa e infantil. Uma alfinetada no coração de Marcos.
“Eu não sei, Cá. Padre Octaviano disse que precisamos esperar.” - Marcos disse.
“E se ele morrer?”
“Você deve ter fé.” - Marcos respondeu, pensando em quão hipócrita era um ateu sugerindo a outra pessoa que tivesse fé.
Todos comeram em silêncio, e quando Marcos terminou, após ruminar sobre os eventos ao longo do dia, perguntou:
“Você sabe se o Stefano tem algum motivo para não gostar do seu pai? Talvez…”
“Olá! Posso me juntar a vocês?” - Lilian entrou na cozinha de repente. Marcos olhou para João e Feit e notou como eles se comportavam diferente quando Lilian estava por perto.
“Claro”. - João e Feit disseram simultaneamente, com a mesma entonação suave, olhando um para o outro, e percebendo que desejavam a mesma coisa. Lilian sentou-se ao lado de João e tocava seu braço enquanto falava, dirigindo-se apenas a ele o tempo todo, deixando Feit louco de ciúmes.
Quando João notou ser o centro das atenções, ele começou a cutucar Feit como uma criança. Marcos não julgaria se José metesse a mão na cara de João.
“Meu pai me disse que você já está indo embora. Que pena.” - Lilian disse.
“Eu? Não, não! Vou ficar pra ajudar essa pobre família nessa fase tão difícil. Me fale sobre seu pai, quem é ele?” - João mentiu, mudando de assunto.
“Meu pai? Ele é o frentista, o Tonho.”
De repente, todo o diálogo que Marcos teve com Gilberto na noite anterior veio à sua mente. Gilberto mencionou as pessoas que viviam na fazenda: Feit era filho da empregada, Lilian era filha do frentista, e Stefano era o viajante que decidira ficar em Esperança. Marcos se perguntava onde a menina grávida estava.
“Como isso? Filha do frentista? Isso não é possível, você é tão perfeita, e seu pai… enfim. Deve ser coisa de idade. Você não se parece com seu pai, isso é que eu quis dizer.” - João gaguejou.
“Sempre me dizem que sou como minha mãe, mas ela morreu no parto. Nem foto tenho dela pra ver o quanto eu sou parecida. Eu nasci em Esperança. Meu pai trabalhava nas minas e ficou bem abalado depois da morte dela, mas já passou. Ele é um homi doce e generoso.”
“Desculpe. Onde está a garota grávida? Gilberto mencionou ontem que uma garota, viajante como nós, aguardava aqui na fazenda.” - Marcos disse.
“Será? O Gil deve estar ficando senil. A garota foi embora há semanas, acho. Talvez ele tenha se confundido.” - Lilian disse.
“Mas vi um carro ontem no estacionamento, um FIAT, perto da caminhonete.” - Marcos disse.
“Não há nenhum carro lá além do vosso e da caminhonete.” - Lilian corrigiu-o.
Marcos perdeu-se em seus pensamentos, tentando lembrar se vira o carro estacionado aquela noite.
“O que ocê tá pensando?” - Cá perguntou.
“Eu? Nada. Você se sente melhor agora que comeu?” Marcos perguntou, olhando para a menina que tanto lembrava sua falecida irmã, Samanta. Elas podiam ser irmãs gêmeas, e até a voz dela soava como memórias. Cá estava passando por uma situação difícil. Marcos queria protegê-la e, assim, compensar a desgraça que ele causara a sua própria família.
“Não se preocupe, Cá. Ficará tudo bem. Eu prometo.” - Marcos disse.
“Por que ocê acha que vai ficar tudo bem? Além disso, logo ocê vai embora, como todos os outros.” - Cá disse.
“Prometo que vou ficar até saber que você e sua mãe estão bem, protegidas, tá?”
“E meu papai?”
“Ele também; vou ficar até garantir que todos estejam bem.”
João e Lilian ainda conversavam, e só pararam quando Feit se levantou abruptamente e disse:
“Eu vou ajudar na missa.”
“José, posso ir?” - Cá perguntou, já levando seu prato para a pia.
“Pode deixar na pia, querida, que vou lavá-lo pr’ocê.” - Lilian disse.
“Eu poderia ajudá-la com os pratos, se você quiser.” - João encarou Lilian, e ela corou.
Marcos também saiu logo em seguida, cansado do flerte entre João e Lilian. Ele não era cristão, mas estava disposto a ajudar com a missa para evitar seu irmão. Entretanto, quando saiu do casarão, Feit e Cá haviam sumido.
Marcos estava sozinho.
As luzes estavam acesas, mas não o suficiente para ver muita coisa. Estava escuro; frio, também, e levou um tempo para o corpo de Marcos se acostumar com à temperatura.
A brisa trouxe os aromas frescos de milho e trigo, além de um cheiro doce e cítrico do Pomar. Hera, sua mãe, usava uma fragrância semelhante àquela, portanto, a brisa trouxera consigo uma nostalgia. O cheiro, o frio e a solidão estimularam suas lembranças. Marcos sentia a gravidade, todo o peso daquele dia em suas costas, e a única coisa que pode fazer foi deitar-se na rede. Louco por um cigarro, ele procurou por seu maço nos bolsos, porém, lembrou-se de tê-lo deixado com Lilian, junto com os dedos de Gilberto. Havia apenas o seu isqueiro Zippo, o qual Marcos acendeu e apagou algumas vezes até ficar entediado. Por fim, Marcos aceitou concentrar-se no som e nos cheiros da fazenda a fim de colocar sua mente para descansar.
Os touros respondiam com um calmo mugido, cantarolando uma suave melodia com o galo e os grilos.
Afundado em pensamentos, Marcos reconheceu o impacto que aquele lugar tinha sobre ele. O peso de ver pessoas boas como Gilberto e Cá, como sua própria família, passando pelo pior dos momentos; a dolorosa percepção de que ele era apenas humano, apenas um homem, incapaz de algo extraordinário, como curar Gilberto ou a doença de sua mãe. Por outro lado, um homem capaz de coisas terríveis, como a morte de seu pai e irmã, e anos de abuso de drogas. Apenas um homem destinado a falhar, afinal. Marcos não se lembrava de quando começara a chorar, só de ter limpado o rosto com a camiseta.
Aquela rede era inútil, pois Marcos nunca poderia relaxar com tanta coisa na cabeça, então ele se levantou e andou pela fazenda escura. Olhou inconscientemente para o estacionamento e notou haver apenas o Jaguar de João e a caminhonete enferrujada de Gilberto, sem o FIAT compacto. Ainda assim, em vez de pensar na menina grávida, Marcos olhou para a caminhonete e lembrou-se do acidente que matara seu pai e irmã.
Paulo tinha uma caminhonete como aquela. Certa noite, quando Marcos era um adolescente ainda, ele pegou emprestada a caminhonete, em segredo, para dirigir até o lago. Devido a uma caminhonete como aquela, algumas bebidas, e um comportamento infantil, seu pai e irmã estavam mortos. Aquele carro era um lembrete de sua culpa.
Cansado de sentir-se mal, Marcos caminhou em direção ao bosque de pinheiros, na esperança de ver a garagem de tratores do outro lado.
Apesar de tentar não pensar em nada, uma imagem não lhe saia da cabeça: Stefano, insistindo em escalar aquele andaime, conspirando com o Padre para causar o acidente. João estava certo antes: aqueles canalhas planejaram tudo. Mas por quê?
Marcos atravessou o bosque escuro e chegou ao galpão do trator. A porta de serviço estava ligeiramente aberta, tremendo com o vento. Atrás do prédio grotesco, o campo de trigo estendia-se lindamente à luz da lua. Ali, sentou-se na cerca de madeira, refletindo sobre sua vida e todos os eventos que o haviam levado até aquela cidade-fantasma. Marcos não acreditava em acaso, mas ele sabia, naquele momento, que era seu destino ajudar os Sylvesters.
Uma sensação de pressão começou em seu peito, o mesmo sentimento que Marcos tivera ao acordar naquela manhã. Por um momento, ele não conseguiu respirar, como se uma bigorna pressionasse seus pulmões.
Será que foi isso que Duda sentiu antes de morrer?, Marcos se perguntou.
Então ele viu algo que fez sua espinha arrepiar, algo no horizonte, além dos campos de trigo.
O ar ficou mais frio. Uma nuvem cobriu a lua e a neblina ficou mais densa. Marcos não podia ver direito, pois tudo estava embaçado, então ele limpou os olhos com o nó do dedo e olhou para frente novamente.
Algo o observava do campo do trigo.
Era uma silhueta preta, olhando-o com quatro olhos amarelos, flamejantes. Marcos limpou os olhos, de novo e de novo, dizendo a si mesmo que era apenas o cachorro de Cá. A distância havia causado a ilusão de que eram quatro olhos em vez de dois. Apesar de Marcos limpar sua vista até arder, a figura ainda tinha os mesmos quatro olhos.
Não é o cachorro. Como poderia ser o cachorro?
Por que isso está acontecendo comigo?, Marcos pensou, ansiando por outra injeção de heroína.
João
João caminhava sozinho até o celeiro, cruzando o pomar, imaginando onde seu irmão estúpido estaria. Marcos estava desaparecido desde o jantar. Não que João realmente se importasse, mas Marcos era um encrenqueiro, e João já tinha problemas suficientes: o Deputado, divórcio, processo, Esperança, o acidente da igreja, a morte do adolescente mais cedo, e Gilberto, pendurado entre a vida e a morte.
Estava escuro, eram por volta das oito horas, e João só não tropeçou nos pedregulhos e galhos quebrados graças à luz fraca que vinha do celeiro.
Ele sentiu um cheiro cítrico-doce de uma grande árvore no meio do Pomar. Um perfume tão gostoso quanto o de Lilian.
Oh, Lili.
Nada poderia abalar o humor de João naquele momento, após ter ficado quase uma hora com aquela mulher perfeita!
Ela pode ir embora com você, João. Uma voz falava, profundamente, em sua mente. Mas você precisa ficar um pouco mais para convencê-la.
“Para convencê-la?”
Sim! Ela gosta de você, e talvez queira mais. Mas se você sair agora, você nunca saberá.
“Mas o meu julgamento?”
O que é mais importante para você agora?
João sabia a resposta para isso, então ele cantou:
O que brilha mais do que a luz nas gotas de chuva?
Lily Belle.
Seus lábios frescos como chuva de outono após o verão.
Lily Belle.
Você gostaria de um raio de sol em um dia chuvoso?
Você pode ter um raio de sol quando ela sorri para você.
No celeiro, João viu um monte de rostos desconhecidos, mas amigáveis. Todos estavam vestidos de preto, trapos. Todos eram feios e pobres.
Várias tochas estavam penduradas nas paredes, e havia uma grande cruz de madeira no centro. Todos estavam em pé, pois não havia cadeiras. Aquele celeiro parecia uma cena de um filme medieval. Padre Octaviano, o pastor e herói, estava no núcleo da trama. Uma mulher de cabelos enrolados chorava atrás do Padre, seguida pelos meninos que João conhecera na construção. Todos choravam frente a um caixão tosco, repousado sobre dois cavaletes.
Stefano estava perto do Padre Octaviano na primeira fileira, parecendo mais alto do que realmente era. Feit estava à porta dos fundos, com os braços cruzados, enquanto a garotinha, Cá, sentou-se em uma pilha de feno em um canto, chorando em silêncio.
A missa começara. João chegou na hora certa.
“Que o Pai misericordioso, o Deus de todo o consolo, esteja com vocês.” - o Padre falou, e o coro de pessoas tristes e solitárias, incluindo João, respondeu:
“Ele está no meio de nós.”
Apesar do cenário tosco medieval, João sentiu-se bem em assistir a uma missa depois de tantos anos. Ele só queria que Lilian estivesse lá também, mas ela havia ficado na casa para ajudar Miridiana. Enquanto ele pensava em Lilian, João viu Tonho, o pai dela, aparecer atrás de José Feit, colocando a mão em seu ombro, fraternamente. Impressionado, João olhou para o velho. Como esse velho horrível pode ser o pai de uma mulher tão perfeita?
O povo cantava um hino com a mão direita no ar. João nunca ouvira esse hino então, ao invés de cantar, ele olhou à volta e encontrou alguém que não parecia pertencer à multidão, alguém como ele próprio. Era uma jovem de cabelos vermelhos, tingidos, unhas verdes lascadas, sexy até, não fosse por sua enorme barriga grávida. Aquela mulher daria à luz provavelmente em alguns dias, ou até mesmo horas! Ela se concentrava na missa sem desviar os olhos, mal piscando.
Será essa a menina que o Marcos perguntou no jantar?, João pensou.
“Desculpe-me”. Uma voz conhecida soava atrás. Era Marcos chegando tarde à missa.
Finalmente, João pensou, relaxado por ver que seu irmão estava bem. Ainda assim, quando Marcos foi até Cá primeiro, em vez de vir para perto dele, o irmão mais velho ficou bravo, enciumado. Marcos disse algo para a garotinha; ambos pareciam miseráveis.
Por que o filho da puta não veio até aqui? Ele prefere essa menininha estúpida ao próprio irmão?
Uma voz em sua mente respondeu: sim, ele prefere.
Por que Marcos se importa tanto com aquela idiotinha? Nós somos família! EU sou irmão dele, não ela!
João sentiu-se sozinho novamente, e a imagem de si mesmo preso voltou à sua mente. Ele muitas vezes se perguntava sobre como seria a prisão e, mesmo conhecendo muitas, a versão de sua própria era muito mais sombria e perturbadora. Ele sempre se imaginava sozinho, sentado em uma cadeira metálica, cercado por barras infinitamente altas, mas sem nenhuma parede, apenas escuridão, além do metal frio. Não havia superfície para arranhar o número de dias que ele se sentaria naquela cadeira fria. Então, em vez riscar o chão, João marcaria o tempo em seu peito nu, em sangue, com suas unhas sujas de terra. A dor seria a única coisa que o manteria são.
“Neste domingo sagrado…” - o Padre continuou, mas João sentiu que algo estava errado.
Domingo? Não é quinta-feira?, João pensou.
“… Uma tragédia aconteceu em nossa pequena comunidade. É uma pena ver a obra de Deus tão cruel em suas formas misteriosas. Mas Ele sabe, portanto, nós confiamos. Hoje, o serviço será dedicado ao Duda, o melhor de nossos caçadores.”
A mãe de Duda, aquela com os cabelos encaracolados, chorava alto, desconsolada. João se perguntou por que o funeral foi tão imediatamente após o acidente e concluiu ser o costume de cidades pequenas. Se eles não tinham telefones, provavelmente não tinham um necrotério também.
O Padre continuou, contudo, mais alto do que os gritos da mulher:
“Descanso eterno conceda-lhe, oh, Senhor, e deixe a luz perpétua brilhar sobre sua alma.”
O serviço continuou. O Padre cedeu a palavra a um dos irmãos de Duda para a primeira leitura. Era Ignácio ou Virgílio? Eles eram iguais, então João não tinha certeza.
O menino ficou à frente da plateia, iluminado por uma tocha cintilante, segurando a velha bíblia em suas mãos. Com uma voz rachada, o menino assim leu:
“Apocalipse de João, capítulo 21, versículo 1 ao 7: Então vi um novo céu e uma nova terra, pois o primeiro céu e a primeira terra tinham passado (…) Vi a cidade santa, a nova Jerusalém, (…) Ouvi uma forte voz que vinha do trono e dizia: ‘Agora o tabernáculo de Deus está cos homi, com os quais ele viverá. (…) Não haverá mais morte, nem tristeza, nem choro, nem dor, pois a antiga ordem já passou’. Disse-me ainda: ‘Está feito. Eu sou o Alfa e o Ômega, o Princípio e o Fim. A quem tiver sede, darei de beber gratuitamente da fonte da água da vida. O vencedor herdará tudo isto, e eu serei seu Deus e ele será meu filho.’”
O Padre cantou os Salmos, e o coro respondeu. Ele cantou os evangelhos e pregou sobre o mistério da vida, usando Romanos, capítulo oito, para saudar o trabalho e a adoração a Deus. A mensagem que João entendeu a partir daquelas palavras foi que o pobre Duda havia cumprido seu propósito na Terra fazendo o trabalho de Deus.
Besteira! Deus não matou aquele garoto. Você o matou, seu Padre estúpido. Você os forçou a trabalhar até que morressem. Você mesmo admitiu ser responsável por tudo. João pensou.
“Desculpe, Padre Octaviano. Uma palavra?” - todos ficaram surpresos quando Stefano interrompeu o Padre durante o sermão. O Padre parecia inquieto mas, após pensar, concordou.
“Vá em frente, meu filho.”
“Desculpe, Padre. Eu não quero pisar no seu pé, mas há algo urgente para debatermos, e já que estamos aqui… Sim, a tragédia de Duda é triste, mas não a obra de Deus. Foi culpa do sinhô!”
“Stefano Spoletto, acho melhor parar…”
Stefano piscou, e Padre Octaviano tornou-se vermelho e silenciou.
“Não se preocupe, eu não conto seus segredos, Padre. Isto não é obra de Deus, não sinhô; era a urgência da igreja. Somos todos culpados de valorizar mais esta igreja do que o bem da nossa comunidade. Pense em comida, por exemplo. Perdemos o verão trabalhando nesta igreja inútil em vez de nos prepararmos para a colheita, e agora não temos igreja nem comida. Eu não culpo Gilberto, que Deus abençoe sua alma, mas a nóis e principalmente ao Padre.”
“Do que você está falando, Sr. Spoletto?” - o Padre gritou.
“Povo, ocêis vêm esses camaradas ali, ali e ali?” - Stefano apontou para João, Marcos e Feit. - “Eles ouviram tudo, alto e claro, de que a igreja deveria ficar pronta antes do Solstício. Certo? Deus disse para terminar ao Solstício, certo Padre? Sabe se Deus também avisou que a igreja ia cair ou o que vamos comer no inverno?”
“Basta, Sr. Spoletto!” - gritou o Padre, tentando intimidar o baixinho, mas alguém gritou em resposta.
“Deixe o homi falar!”
Os touros começaram a mugir alto no pasto, como se sentissem a tensão crescer no celeiro. Stefano continuou:
“Se preocupar só com Deus só trouxe miséria. Nóis, o povo de Esperança, devemos comer antes de rezar. Gilberto, que Deus abençoe sua alma, está morrendo, e nóis, famintos. Quanto tempo para morrermos de fome até Gilberto voltar ou a igreja ser construída? Temos que comer, né? Não há comida, combustível para as minas, nem provisões. Nossa vida depende desta fazenda, e já que Gilberto está incapacitado, eu estou assumindo o controle.”
Uma dúzia de homens musculosos aplaudiam. Eles pareciam sujos de carvão, provavelmente companheiros de trabalho do Stefano.
“Eu assumo a carga e eu provejo. Ocê pode reclamar, Padre, mas esse era o nosso acordo.”
Caraio!, João pensou.
“O quê?” - o rosto do Padre ficou mais vermelho do um que tomate.
“Quem está comigo?” - Stefano repetiu, mais alto e convincente, e a multidão respondeu:
“Nóis estamos!” - a multidão cantou.
“Quem está comigo?” - Stefano repetiu.
“Nóis estamos!” - a multidão cantou mais alto.
A multidão começou a falar toda ao mesmo tempo. Era um ruído branco, nada compreensível. João sentiu a tensão crescendo em sua pele. Ele estava no meio da multidão, onde uma bomba estava prestes a explodir. A multidão pressionava uns aos outros. Alguns defendiam o Padre, outros concordavam com Stefano, e todos gritavam.
“Eu sou o líder agora!” Stefano gritava, repetidamente.
Algumas pessoas concordavam, outras vaiavam, misturando-se aos gritos de Stefano e dos touros. João sentiu-se desorientado pelo barulho.
Pouco antes de a multidão explodir, Stefano gritou uma última coisa:
“Um aviso para os nossos visitantes! Qualquer um que tentar fugir hoje à noite será punido. Estou falando do ceis, irmãos mariquinhas. Ceis vai ficar pra pagar a boa comida e a morada que o Sylvester lhes deu.”
João engoliu seco. Ah! merda, agora estou realmente fodido!
Tenho que sair daqui!
João fugiria imediatamente, mesmo que isso significasse caminhar centenas de quilômetros e deixar seu irmão mais novo para trás. Ele só precisava encontrar uma maneira de sair daquele celeiro, portanto, ele nadou aquele oceano de pessoas até sentir um golpe no pescoço.
A multidão estava se movendo e alguém tropeçou em João. Ele caiu de quatro e sentiu um chute na barriga. Talvez não fosse de propósito, pois todos tentavam sair do celeiro ao mesmo tempo. Ainda assim, a dor foi suficiente para fazê-lo agachar-se como um bebê.
Lutando para respirar e proteger sua cabeça ao mesmo tempo, de mais chutes, João pensou:
Será que vou morrer nessa bosta de cidade?







Comments