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A Casa de Poeira - 3° Capítulo


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A Fazenda dos Touros


Marcos


“Hum... Desculpe incomodá-lo, senhor” - Marcos falou, sentindo como se uma bola de pelos lhe travasse a garganta.

O cachorro latiu violentamente, pronto para atacar, e o mais importante, estava sem coleira. O Fazendeiro olhou para os irmãos, descansando sua espingarda no ombro.

“Tão perdidos, hein? Pode entrar. Tá muito frio aí fora!”

Aquela cena era, obviamente, familiar para o Fazendeiro. Ele abriu a porta de tela e voltou para dentro. Ainda assim, o Cão ficou à porta, um porteiro ameaçador. Seus olhos brilhavam amarelos, e baba escorria de sua mandíbula.

Marcos congelara enquanto olhando para o Cão.

“Miri, mais visitantes!” - O Fazendeiro gritou, quebrando o gelo. Alguns segundos depois, ele estava de volta à porta, dizendo:

“Tão vindo ou não, hein?”

Mas o Cão ainda se mantinha ali. Passado um tempo, o homem compreendeu e tocou-o para longe:

“Cool, vai pra dentro.”

No início, o Cão gigante não obedeceu. Por fim, ele cheirou o ar, olhou para os irmãos, grunhiu um som de “Grrr”, e seguiu para o canto da sala, trotando como um cavalo, livrando a entrada para os visitantes.

Para a surpresa de Marcos, a casa era fantástica, quente e acolhedora.

A sala de estar era enorme, do tamanho do apartamento todode Marcos. Quatro janelas semiabertas traziam o ar fresco para dentro; duas estavam perto de uma lareira, cobertas por uma cortina de renda antiga e requintada, movendo-se suavemente com o vento. O Cão olhou para cima quando o Fazendeiro descansou sua espingarda em um suporte sobre a lareira.

A sala parecia um museu, com móveis centenários, porém, bem preservados. Três grandes sofás cercavam a lareira e havia uma enorme mesa de centro. Seus cantos eram adornados por discretos porta-copos. Tudo feito à mão, em madeira de lei, com almofadas azuis gigantes nos assentos e encostos. Marcos queria muito deitar-se naquelas almofadas e dormir para sempre. O chão era de madeira encerada, perfeitamente polida, e coberto por tapetes de crochê e pele de touro. Um lustre pendia do teto com antigas lâmpadas amarelas incandescentes, no entanto, outras lâmpadas se espalhavam por toda a sala, conferindo um brilho quente ao cômodo. A escada no canto da sala também era de madeira delicadamente esculpida. As paredes, outrora brancas, depois de tantos anos, haviam se tornado amarelas, intensificando, ainda mais, o tom das luzes.

Um vaso de flores frescas repousava sobre a mesa de centro, lírios brancos, que refrescavam o ar. Contudo, o cheiro que mais chamava a atenção era o de café recém-passado, vindo da cozinha.

Havia um corredor logo à frente da porta de entrada, que, aparentemente, conduzia ao quintal e a outros quartos. A cozinha estava à direita, atravessando uma moldura dupla sem portas, de onde o cheiro de café os convidava. O Fazendeiro chamou os irmãos que, ao entrarem na cozinha, conheceram uma senhora charmosa que se encarregava do café, do chá e de uma bandeja de biscoitos. Marcos relaxou pela primeira vez naquele dia, ao entrar na adorável cozinha.

A mulher era velha, contudo, muito bonita, com lindos olhos azuis. Ela disse ao vê-los:

“Bem-vindos! Sou Miri. Por que não se sentam? Parecem cansados.”

A cozinha também era enorme: uma mesa grande, com dois bancos de madeira maciça de cada lado tomava o centro; era grande o suficiente para acomodar, confortavelmente, umas vinte pessoas. As paredes e o chão brilhavam com azulejos brancos adornados por uma cruz preta florida. Os armários eram da mesma madeira dos móveis da sala. Havia uma pia e um fogão de peça única, atrás da senhora sorridente, onde outro bule com água fervente, assoviava; além de mais armários e gabinetes.

Tudo era fantástico! Como viajar de volta aos anos 40, para uma rica e antiga fazenda.

Enquanto os irmãos Rodrigues se sentavam, o Fazendeiro ofereceu-lhes biscoitos recém-assados, sentando-se no banco oposto. O velho encarava Marcos com interesse, provavelmente devido aos seus cabelos e barba compridos.

O Fazendeiro falava como o pai de Marcos, usando até o mesmo linguajar, como dirigir-se a eles como “campeões”. Que nostalgia! A senhora, Miri, trouxe o bule para a mesa, com a porcelana combinando com a cafeteira e a bandeja de biscoitos.

“Então, campeões, se perderam, né? As pessoas estão sempre perdidas por aqui, geralmente dirigindo para a praia. Esperança é uma armadilha de viajantes! Sou Gilberto Sylvester. Essa é a minha esposa, Miridiana, mas todos chamam ela de Miri. Bem-vindos à Fazenda dos Touros. Agora comam e bebam!”

O Fazendeiro encheu uma xícara de café para si, sinalizando para que os irmãos fizessem o mesmo.

Miridiana olhara apenas para o teto enquanto Gilberto falava.

Gilberto era um clássico fazendeiro dos anos 60, careca e sem barba, com maneiras educadas e francas. Seus olhos eram escuros, e seus braços grandes como os de um militar reformado. Marcos não conseguia parar de imaginar que o homem à sua frente poderia ser seu pai, ciente de que eles teriam a mesma idade caso Paulo ainda estivesse vivo. Eles eram tão parecidos quanto irmãos ou primos.

Essa não era a primeira vez que Marcos via seu pai em outras pessoas. Seu psiquiatra chamava tal fenômeno de “mecanismo de aceitação”, muito comum em pacientes com traumas similares ao dele.

“Peço desculpas pelo horário. Meu nome é Marcos, e este é o meu irmão, João. Estamos perdidos e sem combustível.”

“Irmãos, é? O Tonho mandou cêis pra cá?” - Gilberto perguntou.

“Tonho?” - Marcos repetiu.

“O caipira do posto de gasolina.”

“Ah, sim. Infelizmente, ele está sem combustível, mas disse que chega até amanhã. Então, precisamos apenas de um lugar pra pernoitar.” - esclareceu João.

“Desculpe, Campeão, mas não acredite nele. Tonho mente muito. Recebemos combustível normalmente a cada duas semanas, e a maioria vai para as minas de carvão. Meus tratores também estão vazios e estou esperando receber para começar a colheita.”

Aquela era a primeira vez que João prestava atenção à conversa, parecendo desesperado, como se segurasse os intestinos nas mãos.

O Fazendeiro continuou:

“Espero que chegue até amanhã. De qualquer forma, vocês são bem-vindos o quanto pre…”

“Obrigado, mas partimos amanhã.” - interrompeu João.

“Talvez, sim; ou talvez, não, campeão.”

“Ouvi dizer que você tem mais viajantes aqui?” - Marcos perguntou, mudando de assunto.

“Há uma jovem grávida. Coitada. Ela vai parir logo. Vocês provavelmente viram o carro pequeno, italiano, estacionado lá fora. Ela chegou tem uns dias.”

“Ela é a única além de vocês? Imagino que uma casa grande dessa tenha outras pessoas morando, funcionários etc.” - Marcos disse.

“Tem Lilian, filha do Tonho. Ela tem a vossa idade, mora com a gente tem uns anos, e ajuda a Miri com a casa. Tem o Stefano, outro viajante que chegou anos atrás e resolveu ficar aqui em Esperança. Ele trabalha nas minas agora, um trabaio terrivelmente sujo se me permitem dizer. Mas ele é um bom construtor, então ajuda na igreja e na manutenção da fazenda. Tem também o José, filho da nossa antiga empregada. Ela morreu faz muitos anos, e José vive com a gente desde então. Ele é como um filho pra mim, um pouco mais novo que vocês. José é meu braço direito aqui na fazenda. Finalmente, tem a Cá, nossa filha mais nova, mas ela é apenas uma criança ainda, muito jovem pra trabalhar.”

“Você disse que a Grávida está esperando há quanto tempo? “- A voz de João fraquejava.

“Acho que… Miri, faz quanto que a garota chegou? Bolas, não me lembro. Velhice, sabe? Sei que faz um tempo que ela está esperando pelo combustível. Esperança é um lugar tão remoto, nada vem pra cá facilmente.”

João pareceu desesperar-se, buscando em seu telefone alguma forma de se comunicar com alguém fora dali, totalmente alheio à conversa.

“Quanto pelo quarto?” - Marcos perguntou.

“Nós não usamos muito dinheiro por essas bandas. Somos uma comunidade pequena, então não tem muito o que comprar por aqui. Portanto, nós trabalhamos pra pagar nossas dívidas. Sugiro que guarde seu dinheiro pro combustível.” - Gilberto disse.

“Então, como podemos…”

“Trabaio, como eu disse! Há muito o que fazer aqui na fazenda e na igreja. Trabalhem enquanto esperam, e sua dívida tá paga, vice?”

“Senhor…”

“Me chame de Gil, campeão.”

“Claro, Gil. Vamos trabalhar, mas eu insisto em pagar.” - Marcos disse.

“Essa turma de cidade grande só pensa em dinheiro. Aqui, trabalhamos; não ligamos pra dinheiro. Trabalhe e pague sua dívida, não te peço nada mais.”

“Tá, mas sou péssimo com trabalho manual. Sou um programador de computador, sabe? Insisto em pagar.”

“Pro o quê? Não se preocupe, tem trabaio para todos na igreja.”

“Mas eu nem sou cristão…”

“Construção. Nossa antiga igreja queimou alguns anos atrás, e estamos construindo uma nova. Estou velho, e essa conversa já me cansou.” - Gil levantou a mão, terminando a conversa.

Marcos aceitou, porém, planejava deixar dinheiro no quarto ao saírem.

“Descansem hoje, porque amanhã teremos bastante trabaio. Miri vai mostrar os quartos quand’ocês terminarem. Boa noite!” - Gil levantou-se, bebeu o resto de seu café em um único gole, e saiu, seguido por sua esposa.

Quando estavam sozinhos, João olhou para Marcos, com uma mancha vermelha nos olhos:

“O quê?” - Marcos perguntou.

“É brincadeira, né? Você é tão mão de vaca que prefere trabalhar do que pagar o velho?” - João acusou-o.

“Cara, você não está cansado de discutir? Falamos sobre isso amanhã?”

João concordou, mas só porque ele ainda estava focado em seu celular. Eles terminaram os biscoitos em silêncio, e quando se levantaram, Miri surpreendeu-os. A velha havia aparecido do nada.

“Não se preocupem. Eu limpo tudo amanhã. Peguem suas malas.”

De onde saiu essa velha sorrateira? - Marcos pensou.

Marcos e João foram até o carro pegar as malas. Nas duas vezes que passaram pela sala, o Cão gigante ameaçou-os com seus grandes olhos amarelos brilhantes e suas presas pingando baba.

A noite ventava, fria; e a fazenda estava mais escura do que nunca, pois havia apenas uma única lâmpada acesa na varanda. Ainda assim, Marcos conseguia ver o reflexo do jarro de prata contendo as cinzas de sua mãe, no porta-malas. O frasco rolou, então Marcos amarrou-o com um cordão elástico. As cinzas eram muito importantes para ficarem rolando no porta-malas; afinal, eram o único motivo para aquela viagem.

De volta à casa, os irmãos seguiram Miridiana escada acima. Marcos observou a encantadora, porém, estranha mulher. Ela era mais jovem que Gilberto, com cabelos vermelho-escuros e olhos azuis; maneiras simples, provavelmente de família humilde. O mais intrigante era que, à parte seu primeiro encontro, Miri não os olhou mais nos olhos, sempre fixando o próprio olhar no teto. Talvez Gil fosse ciumento, ou ela era só meio 'doidinha'. Uma coisa era certa, vê-la à frente na escada fez Marcos perceber o quão alta ela era, tão alta quanto Gilberto.

No andar de cima havia um extenso mezanino contornando toda a sala de estar, um corredor cheio de portas para os muitos quartos da casa. Era largo como o Jaguar de João. De lá, via-se todo o primeiro andar, incluindo partes da cozinha. O lustre da sala estava quase ao alcance das mãos. Onde o caminho bifurcava, havia uma porta diferente. Miri sussurrava enquanto apontava para as portas:

“Aqui é o banheiro. Não façam baruio, pois o dormitório da Lilian é o da direita e ela acorda facilmente. O quarto de vocês é a primeira porta depois do banheiro, à direita. Stefano é a porta de frente à vossa. E a última, da esquerda, é da Cá. Não vão ali.”

“E os outros moradores?” - Marcos perguntou.

“A garota grávida está na porta seguinte a sua, e o José dorme lá embaixo. Tenha cuidado à noite, pois este corredor fica escuro e é muito fácil perder o senso de direção. Durmo. Boa noite!”

Miri deixou-os tão rápido quanto surgiu.

As portas eram ligeiramente pequenas, com uma maçaneta antiga da qual uma chave se pendurava por um fio do lado de dentro. Marcos tateou a parede, mas não encontrou o interruptor, então João usou a lanterna do celular para encontrar a lâmpada. Ela se pendurava do teto por um fio simples, e tinha um interruptor de giro no bocal. A luz era de um amarelo pálido, fraca, e desconfortável aos olhos. Havia um cheiro forte de naftalina, e o ar estava mofado e úmido.

“Foda-se!” - João disse, deixando cair sua bolsa de couro chique no chão, e correndo em direção ao banheiro.

O quarto era suficiente para aquela noite. Nada luxuoso ou grande, mas suficiente. Havia dois beliches em paredes opostas, uma mesa com um pote de água e toalhas à direita, e um gigantesco guarda-roupas de madeira ao lado da mesa. Tudo era velho, e Marcos notou pó de serra no chão do guarda-roupas; cupins, provavelmente. Tapetes cobriam o chão barulhento, entretanto, não eram suficientes para impedi-lo de ranger. Marcos tentava andar silenciosamente, lembrando-se das palavras de Miri:

Lilian acorda facilmente”.

A janela de madeira estava ligeiramente aberta, não o suficiente para esfriar o quarto, mas para fazer a cortina dançar. Marcos abriu toda a janela, mas não viu nada além de escuridão do lado de fora. O cheiro era fresco, e o quarto poderia aproveitar de um pouco de ar novo, mas Marcos fechou-a assim que não conseguiu mais suportar o frio.

Ele notou que a cortina lhe era estranhamente familiar. Após verificá-la, deu-se conta de que era precisamente igual à do hospital onde sua mãe havia morrido. Estaria Marcos sentindo o luto ou seria apenas uma coincidência?

Os beliches estavam prontos para dormir, com lençóis brancos cuidadosamente dobrados sobre os travesseiros finos. Marcos inspecionou as duas camas para garantir que João não reclamasse, mas foi inútil, pois o irmão mais velho entrou no quarto mugindo feito um touro em um rodeio, rabugento e mal-humorado.

“Silêncio!”- Marcos sussurrou.

“Foda-se! Eles nos colocaram num quarto de operário! Se eles soubessem quem eu sou! “ - João latia.

“Você é um idiota. Agora, cala a boca, não vê que essa é nossa única opção?” - Marcos sentia-se envergonhado com o comportamento do irmão, mas estava muito cansado para discutir. Finalmente, ele pegou sua mochila e foi para o banheiro.

Como Miri dissera, o corredor era realmente escuro, e o banheiro parecia muito mais longe do que Marcos se lembrava. As dobradiças da porta do banheiro gritaram quando ele a abriu; e após encontrar o interruptor de luz, cuidadosamente, fechou-a novamente. De nada adiantou o cuidado, a porta era simplesmente barulhenta.

O banheiro era uma versão miniatura da cozinha, do mesmo estilo, excepcionalmente limpo. Sobre a pia, um pequeno espelho emoldurado em madeira refletia a privada verde musgo, combinando com a pia e o bidê. Apenas a banheira era incompatível, pois era branca e mais nova. A janela era encantadora, um vitral colorido com um mosaico de cruz.

Os passos de Marcos ecoavam pelo banheiro apesar de seus esforços em não fazer barulho.

O rapaz aliviou-se rapidamente, tomou um banho, lavou seus cabelos compridos e a barba, e finalmente escovou os dentes. Pronto! Estava pronto para dormir. Depois de uma inspeção minuciosa do banheiro, certificando-se de que estava tão limpo quanto como o encontrara, Marcos voltou para o seu quarto.

O local estava silencioso, exceto pelo ronco de João que, aparentemente, esquecera-se de tirar os sapatos. Marcos apagou a luz, entrou debaixodos lençóis, e dormiu, instantaneamente.


No dia seguinte, acordou sentindo-se exausto, como se não tivesse dormido nem um pouco. Sentou-se e olhou em volta. O quarto estava vazio, a janela estava aberta, com o sol da manhã trazendo luz e calor para dentro. Marcos sentiu uma estranha pressão em seu peito e ombros, uma sensação de que algo empurrara seu corpo contra a cama durante a noite, como uma bigorna. Novamente, tivera inúmeros pesadelos, como a morte de seu pai e irmã, além da morte de sua mãe e o primeiro encontro com a Sombra.

Marcos lavou o rosto com a água em cima da mesa, alongou-se, e caminhou até a janela, ainda de cueca. A vista da fazenda era relaxante, perfeita para um cigarro.

A floresta de pinheiro estendia-se desde o estacionamento e cercava a propriedade toda e além, quilômetros e quilômetros de extensão, até tocar as montanhas que cercavam o vale. O quintal tinha um balanço e um varal com lençóis brancos pendurados, dançando com a brisa. A poucos metros da casa, havia um barraco atrás do bosque, com duas portas de garagem e, imediatamente atrás, um extenso campo de trigo escondido entre o bosque de pinheiros e os campos de milho.

Marcos aproveitou seu cigarro, mas quando se cansou do silêncio, vestiu sua camiseta favorita, o “Anjo Caído”, do Led Zeppelin, e saiu. O sol da manhã entrava por uma janela no fim do corredor. A luz matinal mudava toda a impressão da casa, que era viva e fresca. Vozes ecoavam da cozinha. Miridiana estava falando com alguém. Marcos parou para olhar ao redor, enumerando as janelas, obcecado com a similaridade das cortinas dali com as do hospital.

Espreguiçando-se, Marcos levou uma eternidade até chegar ao banheiro. Alguns minutos mais tarde, ele estava pronto para o dia!

Fez uma última parada para olhar mezanino abaixo. A sala de estar era diferente durante o dia. Claro, havia algumas teias de aranha aqui e ali, mas, no geral, a casa era extraordinariamente charmosa. Agora que todas as janelas estavam abertas, o ar outrora carregado se tornara fresco com o trigo, os pinheiros, e um cheiro cítrico-doce desconhecido.

Eu me aposentaria em um lugar como este. Talvez seja isso que Gilberto e Miridiana fizeram. Afinal, quem iria querer viver e trabalhar em Esperança, o canto mais abandonado do mundo? - Marcos se perguntou o que eles haviam feito antes de se mudarem para Esperança.

Miridiana estava na cozinha, olhando para o teto, tagarelando, mal ciente de que Marcos a observava do mezanino.

Com quem será que ela está falando? Não consigo ver a mesa daqui. De qualquer forma, deve ser uma discussão emocionante.

Lá embaixo, Marcos entrou silenciosamente na cozinha e ouviu-a falando:

“Netos do Arão? E a culpa é minha agora?”

A cozinha estava vazia. Miridiana parecia falar sozinha, mas Marcos ainda se perguntava a quem pertencia a segunda voz que ele ouvira do mezanino.

“Bom dia!” - Ele disse.

Miridiana deu um salto, em choque. Ela virou-se para Marcos, vermelha como um pimentão, prestes a estourar, enfurecida.

“Desculpe, não queria assustá-la.” - Marcos disse.

“Ocê nunca aprendeu que não se deve assustar um velho, menino? Ai meu coração! Bom dia par’ocê também. Sente-se e coma. Espero que tenha dormido bem.” - Miridiana disfarçou.

“De fato.” Marcos mentiu.

Miri voltou ao trabalho, para nunca mais olhar para ele.

“Quando terminar, se junte ao seu irmão. Ele está andando na fazenda com José, esperando por tu.” - Miridiana instruiu.

“Claro, e desculpe de novo. Eu não queria assustá-la.”

A cozinha parecia mais acolhedora à luz do dia, com os azulejos brilhando e o ar fresco da fazenda. Marcos bebeu uma grande caneca de café, comeu um pedaço de pão caseiro com manteiga fresca e frutas secas do pomar. Tudo era ótimo! Quando ele terminou, disse:

“Deixe-me ajudá-la com os pratos.”

“Pode deixar. Vá ajudar seu irmão na igreja.” Miri esperou Marcos sair da cozinha para virar-se e limpar a mesa; e assim que ele tocou a maçaneta da porta da frente, ela começou a tagarelar novamente.

Velha estranha, falando sozinha, imitando outras vozes… talvez ela seja solitária., Marcos pensou, sentindo certa simpatia.

Da varanda, Marcos podia ouvir os touros cantarolando preguiçosamente, como quem diz “Bom dia!”. O galo também cantava, e os sons combinavam com o perfume no ar, cheirando à umidade e um odor doce-cítrico vindo do pomar. Marcos viu os pinheiros se estendendo por quilômetros à sua esquerda, como uma fortaleza em torno da casa. A estrada estava alguns metros à frente, separando os dois campos de milho, amarelo e verde, dançando, suavemente, com o vento. Havia um pomar à direita, com algumas frutas pequenas penduradas em árvores moribundas, lembrando a Marcos que aquelas frutas cresceriam mais caso eles não estivessem no deserto. Mas, a despeito de tudo, aquele lugar era cheio de vida.

Marcos entrou no pomar, observando as árvores: a maioria era de avelãs, peras, e maçãs, além de algumas flores estranhas, roxas, rosas e brancas.

Uma árvore em especial chamava a atenção: uma planta opulenta sentava-se no meio do pomar, com flores douradas com pétalas pequenas, como uma impressão digital. Borboletas e abelhas dançavam ao redor dos galhos em busca do cheiro doce e cítrico. As folhas dançavam com o vento, conferindo vida à árvore.

Havia um celeiro depois do pomar, do tipo que você vê em catálogos, exageradamente alto. As vigas e a estrutura eram pintadas de branco, enquanto as portas e paredes eram vermelhas. As portas duplas dianteiras e traseiras estavam abertas, mas não havia ninguém lá dentro. Era largo por dentro, facilmente encaixando dois caminhões de bombeiros entre as pilhas de feno e estábulos. Havia também dois baldes metálicos para ordenha. Aquele era um lugar para cuidar dos animais, da saúde e higiene. Havia um mezanino com uma escada de mão, mas já que Marcos estava com pressa em encontrar João, ele não arriscou subir. Os touros mugiam mais perto, e Marcos esperava vê-los no pasto, cruzando o celeiro, porém, não havia nada lá, apenas uma grande área aberta e mais bosque ao fundo.

Os animais provavelmente estão no bosque, se escondendo do sol., Marcos pensou.

Ao redor do celeiro, seguindo um cheiro engraçado, Marcos encontrou um galinheiro com uma dúzia de galinhas e um pequeno silo metálico.

“João?” - Marcos gritou, mas apenas um touro respondeu ao seu chamado.

Ele pegou a estrada de volta a fim de observar os campos de milho, esperando ver João em algum lugar no caminho. Por sorte, João vinha no sentido oposto, junto a outro homem.

“Finalmente!” - Marcos suspirou e esperou-os próximo à saída da fazenda, concluindo que aquele homem estranho só poderia ser José. Naquele momento, ele notou algo peculiar: João e José eram tão estranhamente semelhantes, que poderiam facilmente ser tomados por irmãos.

Embora José fosse mais jovem e musculoso, assemelhava-se a João em vários aspectos, exceto por sua pele bronzeada; cabelos vermelhos curtos e olhos castanho-claros. Além disso, José usava macacão sobre uma camisa xadrez verde e vermelha, enquanto João, calças de terno e uma camisa de linho.

“Ocê é o mais novo? Venha. Gilberto está esperando há horas!' - O jovem disse.

“Oi! Meu nome é Marcos.” - Marcos sorria, mas o homem virou as costas e começou a sair da fazenda. João não se surpreendeu com a grosseria, pois ele também parecia ignorar seu irmão mais novo.

Sim, são iguais., Marcos pensou amargamente.

“Então, você é o José, certo?” - Marcos tentou novamente.

“Sim, mas ocê deve me chamar Feit.”

Marcos cansou-se da grosseria, ficando, portanto, para trás, deixando que os “adultos” andassem na frente.

Uma das mãos e o pescoço de José tinham cicatrizes de queimadura, o que fez Marcos lembrar-se da história da igreja queimada, que Gilberto havia mencionado na noite anterior.

João estava vestido como um advogado. Marcos se perguntava o que se passava em sua cabeça, ao vestir-se em camisa de linho, calças sociais, e sapatos italianos chiques, para um dia de trabalho pesado? João era um homem tão vil e vaidoso. A pior parte eram seus sapatos perfeitamente polidos, sempre como novos, o que significava que ele acordara cedo para poli-los.

“Bom dia, irmão, vejo que teve tempo de polir seus sapatos.” - Marcos zombou.

“Obviamente. Eu não conseguia dormir, e meu sapato precisava de manutenção, então…” - João respondeu sem olhar para trás, e sem um pingo de senso de humor.

Os três homens cruzaram a estrada da fazenda entre dois campos altos de milho. Marcos ficou curioso e se aproximou para pegar uma espiga, quando José imediatamente gritou:

“Não toque nisso.”

Que cara esquisito!, Marcos pensou.

A estrada à frente era longa, e Marcos já se sentiaentediado. Deixando José e João à frente, ele andava de costas, observando a fazenda diminuir a cada passo que dava.

Eu gostaria de poder ficar naquela rede da varanda o dia todo, esperando o combustível chegar. Ah, há uma torre de água perto da casa!

Marcos observava todos os detalhes que ainda não notara da fazenda, como o quão longe era a montanha e como os hectares de pinheiro cobriam todo o vale.

Até ele ver uma garota entrando na estrada.

A menina corria em direção a eles, seguida pelo ameaçador cachorro gigante. O Cão parecia divertir-se, diferente da máquina mortífera que, na verdade, era.

Quando a garota se aproximou, Marcos notou nela algo familiar. A garotinha parecia...

Marcos parou, limpando os olhos, incrédulo, tremendo e suando. Ele sentiu como se suas entranhas estivessem sendo reviradas.

“Samanta!”

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©2022 by Leo Marcorin. Da Dusty Door

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