A Casa de Poeira - 7° Capítulo
- Leo Marcorin

- Feb 2, 2023
- 22 min read

A Colheita
João
João viu uma mão e a agarrou. Era Marcos puxando-o para cima. Seu olho estava roxo, pois provavelmente ele também se machucara no conflito.
“Pensei que você estava morto.” - Marcos disse.
Eles saíram do celeiro pela porta dos fundos, ouvindo a multidão aplaudindo Stefano.
Apesar do som alto dos touros, não havia animal algum.
“Bando de ignorantes! Temos que sair daqui agora mesmo!” - João gritou, segurando a dor em sua costela.
“E como você planeja fazer isso? Não temos como dirigir. Você quer andar centenas de quilômetros até uma cidade desconhecida no meio da noite? Devemos voltar, descansar, e pensar sobre isso amanhã.” - Marcos disse.
“Onde está a garotinha?”
“Feit a levou de volta quando a confusão começou.”
Eles cercaram o celeiro e viram a multidão se afastando na estrada.
“Devemos evitar a estrada. Vamos pelo Pomar.” - João estava cauteloso.
“Por quê? Eles não têm razão nenhuma para nos machucar.”
“Eles são um bando de animais, Marcos. Olha o que acabou de acontecer!”
“Eu acho que o Stefano planejou o acidente para tomar conta da fazenda. O resto das pessoas provavelmente está apenas com raiva ou fome.”
“Outra razão para vazar daqui. O Stefano é louco; essas pessoas são loucas!”
O desespero estava crescendo em João, pois ele sabia em sua alma que algo estava errado com Esperança.
O cheiro doce-cítrico do Pomar deixou João mais calmo. Quando chegaram à árvore de folhas amareladas, Marcos parou e disse:
“Não podemos ir hoje à noite.”
“Claro que podemos. Se for necessário, deixamos o carro e pedimos ao seguro para vir buscá-lo. Podemos caminhar até a próxima cidade.”
“Não, eu quis dizer, não podemos sair por causa deles, os Sylvesters. Esqueceu a generosidade do Gilberto? Se o Stefano tentar matá-lo novamente ou, pior, tentar machucar Miridiana, ou a Cá?”
“Isso não tem nada a ver conosco. Trabalhamos hoje e pagamos o devido e até salvamos Gilberto dos destroços. Não devemos nada a ele. Eu até me ofereci para levá-lo ao hospital se eles me dessem o Diesel.”
“Chega! Você percebe a quantidade de merda que sai da sua boca? O banco traseiro do Jaguar mal comporta nossa bagagem, e você quer colocar um moribundo em um espaço confinado e dirigir sabe-se lá quantas horas para uma cidade que você nem conhece? Você mataria um homem só para ter o que você quer?” - Marcos explodiu.
“O que você quer dizer com isso? Só estou tentando ajudar.” - João se defendeu.
“Olha, João, não use a vida de outra pessoa para conseguir resolver a merda que você transformou a sua.” - Marcos fez uma pausa por um momento, tomando um longo fôlego, e, quando finalmente falou, seus olhos brilhavam de ódio - “Podemos ser sangue do mesmo sangue, mas você não é meu irmão. Sinceramente, você não significa nada pra mim. Então, o que você precisar fazer pra resolver sua vida, faça sozinho. Eu vou ficar e fazer a coisa certa.”
“Você se acha tão bom, né, Marcos? Sanguessuga filho da puta. Pensa que eu não sei que você só cuidou da mãe para ter um teto sobre sua cabeça? Você é um grande chupim!”
“Ah, é? Pergunta para sua mãe o que ela acha. Ah, você não pode, né? Ela tá morta, né? Quando foi a última vez que a viu viva, dez meses atrás? Larguei minha vida para trás para cuidar dela, enquanto você estava fazendo qualquer outra coisa mais importante. Você é um menininho mimado mordendo a mão de quem te alimentou. Assuma pelo menos a responsabilidade pelo que fez com sua ex-mulher. É mais do que a mãe teve de você.”
João não conseguia respirar com toda a adrenalina correndo pelo coração. Seu corpo estava rijo, seu ombro e pescoço, tensos, mal se movendo, e o sangue veio para os seus olhos. Tudo se tornara vermelho. Ninguém nunca tinha falado com ele daquele jeito, e Marcos, um mendigo merdinha, não tinha o direito de sentir-se superior. Incapaz de falar, João mandou seu punho para frente. Marcos teve o que merecia: um soco no nariz.
Marcos foi direto para o chão. Ao invés de chorar pelo nariz sangrando, ele começou a rir:
“Joãozinho, Joãozinho… você não mudou nada, né? Vá embora, se quiser, só pare de brincar com a vida dessas pessoas. Vê se resolve sua vida dessa vez!”
As palavras ecoaram como um sino. João conhecia essas palavras, pois ele as havia dito oito anos atrás, quando Marcos teve uma overdose.
Enquanto isso, Marcos riu de novo, como um dos maníacos de Esperança.
Um calor subiu desde a barriga de João até o pescoço e a cabeça, escorrendo em sua testa. Seu coração corria a duzentos quilômetros por hora na segunda marcha. João queria gritar ou agir violentamente, mas ele só sentia desespero. Ele, o garoto brilhante, cresceu e desapontou todos a quem conhecia. Amigos, esposa, mãe e irmão. Felizmente, seu pai estava morto e não veria sua vida desmoronando.
Não havia nada mais a fazer senão ir embora, então João se foi, deixando Marcos sozinho, na lama, perto da árvore amarela.
Marcos
Minutos se passaram desde que João havia saído, e Marcos ainda estava no chão, tendo problemas para respirar com o nariz sangrando. Ele parara de rir há um tempo, mas só porque começou a desejar aquela seringa descansando ao lado de sua cama. Oh, minha doce heroína. Você me faria voar nesse momento?
Não havia drogas disponíveis, apenas uma garotinha que precisava de ajuda. Prometi a Cá que ficaria, e é isso que eu vou fazer. Marcos pensou. Gilberto mencionou haver viajantes aqui o tempo todo, então, cedo ou tarde, vou conseguir uma carona. Não preciso do João e do carro estúpido dele.
Com um esforço tremendo, Marcos sentou-se. O sangue no nariz havia secado, mas sua língua ainda estava inchada. Toda vez que ele respirava, seu nariz assoviava.
Quatro olhos amarelos apareceram no escuro, tão perto que Marcos poderia agarrá-los. A Sombra assistia a toda a cena de trás da árvore, rindo. Toda vez que Marcos perdia o controle, a Sombra estava por perto.
“Vá se foder também, merda sem vida!” - Marcos latiu para a Sombra, não se importando se alguém o visse falando com fantasmas.
“Nossa, que homem tão corajoso. O que você fará, homem corajoso? Ficar para trás para ajudar a menina?”
“Obviamente.”
Os quatro olhos amarelos piscaram.
“Você não tem nada melhor para fazer, não? Ah, é, você não tem! Aqui o teto é de graça, e você é só um chupim como seu irmão falou. Seu irmão não parece se importar com os Sylvesters, então por que você se importa?”
“João só se importa consigo mesmo. Ele nunca entenderia.”
“Mas por que você se importa?”
Marcos não respondeu, mas sabia a razão. Gilberto se parecia com seu pai, e Cá, com sua irmã, numa estranha conexão. Marcos nunca poderia mudar o passado, evitar a morte de sua família, mas talvez ele pudesse fazer o bem pelos Sylvesters, mais do que ele fez pelo seu pai e irmã.
Enquanto Marcos meditava perto da árvore, ele ouviu João gritando.
“O que tá acontecendo?” - Marcos se perguntou em voz alta, tentando, dolorosamente, levantar-se, e tropeçando em seu caminho para fora do Pomar.
“Acho que seu irmão se meteu em problemas novamente.” A Sombra falou, tão perto, que Marcos podia sentir seu hálito pútrido.
Um pequeno grupo de trogloditas estava no estacionamento, rindo e gritando. João estava no chão, segurando o rosto e gritando contra Stefano.
Marcos se esqueceu de sua dor instantaneamente e correu para defender o irmão:
“Fica longe dele!”
A Sombra estava no Jaguar, assistindo à cena com seus quatro olhos amarelos.
“Olha quem chegou para a festa! Então os ratinhos estão fugindo? Pobre Gilberto. Que vergonha!” - Stefano disse.
Marcos protegeu o irmão com seu corpo magrelo, gritando:
“Sai fora!”
“Oocês não me ouviram na missa? Ninguém vai embora hoje à noite. Ocêis vão pagar pela estadia. Até amanhã à noite, todos esses campos de milho vão estar cortados, assim como suas mãos em sangue, mariquinhas.” - Stefano disse, cuspindo no chão.
Estamos cercados., Marcos pensou, vendo que dúzias de trogloditas o cercavam segurando facões.
“Desculpe, foi minha ideia sair. Meu irmão estava apenas colocando as malas no carro.” - Marcos mentiu - “O recado está dado. Trabalharemos amanhã conforme o combinado.”
“O quê?” - João gritou.
“O cabelinho aqui é mais inteligente que o bonitão.” - Stefano cuspiu novamente, porém, desta vez mais perto dos sapatos importados de João; e saiu rindo com seus trogloditas. Antes de cruzarem a porteira, ele gritou:
“Escolha inteligente, mariquinha.”
“Tire suas mãos imundas de mim!” - João reagiu quando Marcos tentou ajudá-lo a levantar-se. O irmão mais velho ficou em pé num pulo e limpou a sujeira das roupas. Havia sangue em sua boca, e ele grunhia de dor, segurando sua barriga enquanto andava, curvado.
“Filhos da puta!”
A bolsa de couro de João estava no chão, ao lado do Jaguar, parecendo um cadáver. João pegou-a e voltou para dentro da casa, cuspindo sangue na grama, sem esperar por Marcos.
Cansado, Marcos voltou sozinho para o casarão, sentindo o atrito e a dor em seus ossos. Quando passou pela varanda, ele viu a Sombra em um canto escuro, abaixo da janela da cozinha, dizendo, ao piscar seus olhos amarelos:
“Divertido.”
“Cale a boca.” - Marcos reagiu.
Já dentro, Marcos notou que Miridiana estava na cozinha, olhando para fora da janela, provavelmente observando o que acontecera no estacionamento.
“Boa noite, Miridiana.”
“Olá.” Ela parecia uma velhinha frágil, amedrontada, olhando para o azulejo.
“Sinto muito pelo barulho lá fora.”
“Que baruio?”
Que barulho?, Marcos pensou, imaginando onde a mente de Miridiana poderia estar, porque, certamente, não estava naquela cozinha. Ela estava sempre à deriva. Como ela não está notando o sangue na cara e camisa, ou meu olho roxo?
“Nada. Como está a Cá?”
“Dormindo.” Era como falar com um robô.
“E o Gilberto? Melhor?”
“Sim.”
Marcos deixou-a sozinha e subiu a escada para o seu dormitório, sentindo a dor de cada passo, parando para observar o corredor escuro, intocado pela luz que vinha da cozinha. Marcos olhou para as portas de Cá e Gilberto brevemente antes de entrar em seu quarto.
João estava se preparando para dormir.
Eles se ignoraram pelo resto da noite.
Marcos pegou roupas limpas e foi ao banheiro, onde lavou seus cortes e hematomas com a água salgada do deserto. Suas mãos estavam quebradas, a pele, seca, e havia bolhas por toda parte. Furou-as uma a uma, cuidadosamente, e lavou-as com água quente e sabão.
Seu nariz ainda sangrava. Essa não era a primeira vez que Marcos consertara seu próprio nariz deslocado. Após colocar o nariz de volta no lugar, seu sangue fluiu como uma torneira aberta.
Marcos finalmente relaxou no banho.
Antes de sair do banheiro, ele limpou todo o sangue e procurou nos armários por ataduras e remédios, mas não encontrou nada de útil.
Acho que vi um kit de emergência no Jaguar outro dia… ou foi hoje? Quando tive que atar um corte aberto no queixo do João? Estou todo confuso, e minha cabeça está me matando. Eu só queria dormir agora.
Marcos finalmente voltou para o quarto, tateando, no escuro, seu caminho até a cama, enquanto João dormia profundamente.
As horas se passaram.
Marcos não conseguia dormir. Sua cabeça explodia de dor e não havia uma posição confortável na cama.
Marcos não conseguia ver um centímetro à frente na escuridão. Ainda assim, ele sentiu que alguém estava no guarda-roupas, e ele sabia quem.
João roncou profundamente.
Do lado de fora, os touros bocejavam enquanto as corujas piavam.
Os grilos eram como tic-tacs no relógio.
Tic
Tac
Tic
Tac
O tempo passou sem descanso.
Marcos dobrou o travesseiro em muitas formas, mas não havia posição confortável. Seu pescoço, costas, nariz inchado, calor… não havia esperança.
Seu corpo gritava, desesperadamente, implorando-lhe para descansar, para deixar de lado a dor. Ainda assim, sua mente era impiedosa, vigilante, ignorando a ferida e o sangue manchando o leito branco. O Impulso da Heroína estava lá também, como uma terceira entidade, tentando remediar tanto o Corpo quanto a Mente.
Não havia remédio, tampouco heroína. Apenas um dia terrível seguido por uma noite terrível.
Muitas memórias iam e vinham durante a noite:
O momento em que seu pai e irmã morreram, antes de o caminhão bater, a desesperança nos olhos de Paulo quando soube que sua vida estava prestes a acabar.
O momento em que sua mãe morreu no hospital, seu corpo moribundo como um esqueleto. Por um momento, era como se sua mãe tivesse morrido há anos, não há duas semanas.
O momento em que Duda morreu, apenas uma criança, seu corpo esmagado, ofegante, e as lágrimas rolando de seus olhos.
Marcos não parava de pensar em Gilberto morrendo no quarto ao lado.
O pior de tudo era contar sem parar os quilômetros, as cidades, as horas e os minutos desde a última vez que sentiu a agulha em seu braço.
A Sombra sussurrou de dentro do guarda-roupas:
“Só mais uma vez!”
Como eu gostaria!
Marcos não respondeu à Sombra, apenas dormiu novamente, mudando de posição várias vezes: para trás, frente, de lado, em posição fetal.
Ele devia ter cochilado algumas vezes sem perceber, mas rapidamente acordava, ofegante, sentindo aquela estranha pressão sobre seu peito.
A Sombra andava pelo quarto. Marcos conseguia ver os quatro olhos amarelos se aproximando.
De repente, ele não conseguia se mexer. Estava paralisado, amedrontado.
O quarto começou a esfriar e Marcos não conseguia parar de tremer, sentindo o pulso elétrico percorrendo sua espinha, mexendo em seus cabelos como uma mão invisível.
A Sombra se aproximara ainda mais. Seus olhos amarelos se moviam lentamente.
Marcos sentia-se preso em seu próprio corpo. Ele gritou, mas sua boca não se mexeu, como se uma mão invisível segurasse sua garganta.
A Sombra estava agora tão próxima que Marcos sentia seu cheiro pútrido, sentia a névoa subindo em sua cama e sentando-se em seu peito. Seus olhos estavam milímetros à frente dos de Marcos.
Marcos se debatia como um peixe fora d’água, desesperadamente tentando mover-se ou gritar. Seu corpo não estava mais sob controle. Ainda assim, suas lágrimas rolavam.
Marcos não conseguia respirar.
Conseguia apenas sentir medo.
Será que foi isso que Duda sentiu antes de morrer?
Foi isso que o pai sentiu antes de morrer?
A Sombra estava por toda parte, misturando seu corpo volátil, frio e preto, em torno da pele de Marcos.
Marcos sentiu seu corpo sendo esmagado, e a voz da Sombra sussurrava em seu ouvido:
“Marcos, acorda. Acorda, seu preguiçoso do caralho!”.
Finalmente, Marcos pode respirar. Ele acordou gritando! O ar veio todo de uma vez, e ele sentiu a dor dos seus pulmões expandindo. Ele tocou o peito para ter certeza de que seus ossos ainda estavam ali.
João posava ao lado da cama de Marcos, tão apressado que nem notara o estresse do irmão. Enquanto isso, a luz da manhã refletia em todo o quarto, quase cegando Marcos.
“E troca de roupa. Olhe a sujeira que você fez na sua cama, cheia de sangue seco, e seu rosto, cara, você tá todo fodido!”. João já havia se vestido com uma nova camisa branca, tão chique quanto um gerente de banco, exceto pela marca em seu rosto, uma cortesia de Stefano na noite anterior.
Mas que… Marcos sentiu-se confuso, tentando entender se ainda dormia. Seu peito doía, e havia sangue de seus cortes por todo o lençol. Finalmente, Marcos levantou-se e sentiu seu corpo doer.
Stefano gritava no corredor, anunciando ser hora da colheita.
“Idiota do caralho!” João suspirou irritado. A cena era cômica, então ambos os irmãos começaram a rir. Por um momento, tudo parecia bem, como se a noite anterior nunca tivesse acontecido.
Após se vestirem e Marcos encontrar um novo maço de cigarros, eles desceram. O café da manhã estava servido. Lilian e Feit sentavam-se à mesa, comendo, enquanto Cá ajudava Miridiana com os pratos sujos. Havia tristeza no ar.
“Bom dia, Bela Adormecida! O que aconteceu com seu rosto?”. Lilian estava surpresa com o hematoma no rosto de João. Feit morria de ciúmes, desviando o olhar, irritado. O arranhão no rosto de João era apenas uma fração da tragédia que era o rosto de Marcos. Ainda assim, Lilian estava mais interessada em João do que em qualquer outra pessoa.
Marcos sentou-se no canto da mesa enquanto João, ombro a ombro com a mulher desejada.
“Tive problemas com o Stefano ontem à noite.” - João disse.
“Stefano fez isso?” - Lilian repetiu.
“Não, não. Aquele baixinho inútil não conseguiria se tentasse. Foi um dos gorilas.”
“Esses mineiros!”
João parecia querer dizer algo, mas seu rosto mudou e, depois de uma pausa, ele finalmente falou:
“Eu gostaria que você estivesse na missa ontem.”
“Eu não sou cristã. Nunca assisto à missa, e normalmente estou ajudando a Miri. Mas meu pai me contou da confusão.” - Lilian explicou.
Cá enxugava um prato molhado com um pano, triste e sem esperança. O olhar no rosto da garota fez Marcos lembrar-se de outra pessoa da noite anterior, então ele perguntou:
“Desculpe, Lilian, você disse que a garota grávida já foi embora, mas ontem eu a vi na missa.”
João confirmou que também a viu.
“A garota grávida? Não é possível. A pobre garota se foi há um tempo. Talvez fosse outra pessoa da cidade.” - Miri respondeu, da pia, mal virando a cabeça.
Marcos achou estranho, porém, era perfeitamente plausível que outra mulher em Esperança estivesse grávida e assistisse à missa. Ainda assim, a mulher não era como os demais residentes.
“Como ela saiu sem o combustível?” - João perguntou. Aparentemente, João só conseguia falar sobre o diesel do seu carro.
“Alguém veio buscá-la, eu acho.”
“A locadora de carros! É claro. Eles provavelmente rastrearam o carro.” João parecia satisfeito.
Lilian e Miridiana estavam confusas, mas concordaram para encerrar o assunto.
“Que saco, poderíamos ter pagado a locadora para nos rebocar também!”
“Por quê? Ocê está planejando me deixar em breve?”. Lilian cantava com sua voz adorável. Quando José Feit não conseguiu mais segurar seu ciúme, ele levantou, pisando duro, e disse, antes de sair:
“Hora de trabalhar”.
Marcos também estava cansado daquela conversa mole entre seu irmão e Lilian, então seguiu Feit para fora da casa, dando à Cá uma última espiada preocupada antes de sair.
João
A noite anterior ainda assombrava João. Ele estava decepcionado com a falta de apoio de Marcos, além de sua tentativa fútil de tentar defendê-lo. Como se Marcos fosse mais homem do que João para ser o defensor! Mas o pior foi a conversa sobre responsabilidade, implicando que eles tinham um dever para com a família Sylvester, o que era um absurdo. Eles pagaram suas dívidas com o trabalho na igreja; esse foi o acordo. João não lhes devia nada!
Ele já tinha preocupações suficientes de qualquer forma. Principalmente o julgamento que definiria sua vida, apenas alguns dias adiante. O julgamento era a única coisa que importava… além de Lilian.
Mas por que me importo tanto? Por que preciso me explicar tanto pro Mendigo? A maneira como seu irmão mais novo entrou em sua mente e reviveu velhos sentimentos primitivos sobre sua família e si mesmo era algo além da compreensão de João. Essa sensação de fracasso e decepção era algo com que ele não estava acostumado. Era como se Marcos tivesse o poder de lhe deixar inseguro.
E quanto ao Stefano... aquele merdinha do caralho que não saia do pé! João acordou de manhã pensando nas formas de machucar aquele homem durante a colheita estúpida.
Vou ensinar uma lição àquele merdinha.
Apesar de todas as preocupações, algo no coração de João amanheceu otimista. Era como se ele soubesse que o combustível chegaria naquele dia e ele voltaria para estrada. Tudo ficaria bem! Então, por que não aproveitar as últimas horas com Lilian?
Marcos de repente voltou para a cozinha, dizendo:
“João, é melhor você vir.”
João levantou-se e olhou para Lilian. Ela parecia apreensiva, mas após uma piscadela, sorriu, e estava tudo bem.
Stefano gritava em frente à casa:
“Finalmente a boneca preguiçosa acordou. Vai fugir de novo, mariquinha?
“Vou fazer você desejar que sim!” - João desafiou, mas Stefano apenas riu.
Em frente ao milharal, Feit entregava as ferramentas de corte para os voluntários, e quando viu João se aproximando, pegou uma foice e jogou em sua direção, esperando que João a pegasse no ar. Em vez disso, o cabo da foice atingiu o peito de João antes que ele pudesse reagir.
“Ei, cuidado!” - João latiu.
“Cuidado o quê, garotinho da cidade? Melhor ocê ter cuidado, e ficar o mais longe possível da Lili, entendeu? Da próxima vez, a foice vai atingir sua cabeça!” - Feit latiu de volta, com um facão nas mãos, pronto para a briga.
O sol surgiu ainda mais quente.
Não que João se sentisse intimidado ou algo assim, afinal, ele facilmente colocaria aquele garoto Feit no lugar dele, mas Stefano interveio e acabou com a discussão. O baixinho riu e empurrou Feit para dentro das plantações, dizendo:
“O Romeu quer defender sua dama, é? Que tal trabalharmos primeiro, e depois cêis brigam?”
Por volta das 14h, Miridiana trouxe comida e refrescos. João sentia seus braços e mãos dormentes, mal conseguindo segurar o copo de suco de milho sem tremê-lo entre os dedos. Apesar de estar em forma após anos de academia, ele admitiu que seu corpo não estava preparado para aquele trabalho.
Cá sentava-se na varanda, assistindo à colheita com seu Cão gigante ao lado, e tão triste quanto uma foto de família em preto e branco. João notou que Marcos não parava de olhar para a menina com aquele olhar de cachorrinho faminto. Que idiota!
Eles terminaram de comer e voltaram ao trabalho.
A divisão de trabalho era simples: João, Marcos e os voluntários, dos quais a maioria eram mineiros, cortavam as árvores de milho no talo, enquanto Stefano e Feit removiam as espigas. Então quando o carrinho estava cheio, um deles levava a carga para o celeiro.
Toda vez que Stefano se inclinava para pegar um talo, João imaginava seu facão afundando em seu pescoço medíocre. Seria assassinato; mas se João acertasse uma perna ou um braço, seria um acidente de trabalho. Ainda assim, ele tinha dúvidas quanto a o que acertar.
Eles terminaram de cortar um terço do primeiro milharal no final da tarde, o que significava menos de um décimo dos campos. A colheita duraria facilmente por mais três dias. João ouviu que todos continuariam trabalhando até tarde da noite, porém, ao invés de cortar os talos, eles iriam abrir as espigas e classificar a qualidade do milho, decidindo quais seriam granulados para o silo ou consumidos imediatamente.
João não esperaria, mas fugiria de Esperança naquela noite. Sem dúvida, ele preferiria andar mil quilômetros no deserto a suportar outro dia de trabalho como aquele.
No início da noite, um motor rugiu perto da fazenda. Tonho chegara com seu caminhão de combustível, dirigindo-se diretamente para o galpão do trator.
“O que esse velho quer?” - Stefano murmurou, e Feit correu para verificar.
O combustível chegou, João pensou. Eu sabia!
Cá correu para se encontrar com Feit no campo em frente da casa, mas antes de cruzarem o bosque, o velho apareceu entre as árvores, dizendo algo para a garotinha e entrando na casa. Stefano estava tão impaciente quanto João, e ele correu para dentro da casa para descobrir o que estava acontecendo.
Nem um minuto depois, Cá correu para os campos de milho com a notícia.
“É o Tonho!” - ela disse.
Como essa menina é inteligente, meu Deus!, João pensou, sarcasticamente.
“Ele trouxe gasolina pros tratores.” - Cá disse.
“Aí, sim! Sabe se ele trouxe para o meu carro também?” - João comemorou.
“Seu carro? Eu não sei.” - Cá parecia confusa.
Garota inútil! Por que Marcos se interessou tanto nela?
“Deixe ela em paz!” - Marcos interveio, furiosamente.
João estava tão feliz que ignorou a ambos, correndo para dentro de casa para confrontar o velho, deixando um rastro de sujeira por toda parte em que pisou.
Uma discussão entre Tonho e Stefano soava na casa. Miridiana estava em pé na porta da cozinha, assustada, enquanto o Cão latia freneticamente.
“Abasteça os tratores, velho inútil! Por que estamos discutindo isso?” - Stefano gritava.
“Quem você pensa que é pra me dar ordem, seu bobão? Miri, sabe se o Gil concordou com esse tonto dando ordens?”- respondeu Tonho.
Miridiana balançava a cabeça, confusa, abrindo e fechando a boca sem soltar uma palavra.
“Ele está dormindo!” - Cá entrou na casa gritando e defendendo a mãe. Obviamente, Marcos a seguiu, carregando um facão.
“Sr. Tonho, sabe se meu combustível também chegou?” - João perguntou, ignorando o tornado que acontecia diante dele. Afinal, nada daquilo era problema dele.
“Sai, bobão! Miri, posso falar com Gil?” - Tonho perguntou.
“Ele não pode falar!” - Cá gritava ao correr para perto da mãe, segurando em seu vestido azul. O Cão sentou-se ao seu lado, como um guardião.
“Já falei que o Gil já era! Sou líder agora, então faça o que digo, seu velho inútil!” - Stefano continuou gritando.
Tonho ignorou-o, olhando fixo para Miridiana e Cá, esperando por suas ordens.
João queria dizer algo; ele não dava a mínima para aquela discussão e só queria seu Diesel. Assim que recebesse seu combustível, ele deixaria aqueles animais discutirem o quanto quisessem. Quando pensou no que dizer, sentiu uma mão quente em seu ombro:
“Para.” - Marcos sussurrou perto de seu ouvido.
“Pare de enrolar, velho idiota. O Sr. Batata lá cima já deve estar morto como sempre. Sou líder agora!”
Depois dessas palavras, a mão no ombro de João se tornou rígida. Marcos estava prestes a explodir, então João sorriu e pensou: eu deveria impedi-lo de fazer algo estúpido.
A tensão crescia na sala.
Todos estavam em silêncio, esperando que alguém explodisse primeiro.
Tonho olhava fixo para Miri, esperando uma resposta. Então, sob pressão, ela finalmente disse, correndo para cima, seguida de Cá e do Cão:
“Vá e encha os tratores! E cêis todos, saiam da minha casa. Estou cansada dessa loucura interminável!”
“Tá vendo, velho inútil? A coroa aqui sabe mais do que ocê!”
“Mais respeito!” - Marcos disse, levantando o facão.
João agarrou o ombro do irmão e sussurrou, sorrindo:
“Para.”
Marcos deu o facão a João e subiu para ver os Sylvesters. Tonho saiu, seguido por João e Stefano.
“Tonho, estou cansado de esperar. Cadê meu combustível?”- João declarou, muito firme.
“Mariquinha aqui quer fugir?”- Stefano zombou.
“Não se esqueça de quem está segurando o facão desta vez, seu merdinha.” - João ameaçou, e Stefano saiu, rindo.
O velho olhou para João, com aqueles velhos olhos verde e azul, e disse:
“Seu combustível está no posto. Mais tarde ocê pega.”
“Quanto mais tarde?”
“Mais tarde. O que acabei de falar?”
Tonho continuou andando, mas João seguiu-o, tagarelando:
“Você não tem nada agora com você? Eu só preciso de meio tanque de diesel, e juro que saio do seu pé.”
Tonho parou e pensou por um segundo antes de dizer, com um tom de decepção:
“Lili disse que ocê era legal. Pena que ela tá errada.”
Essas palavras fizeram João pensar por um momento.
O velho sumiu pelo bosque, dirigindo-se ao o galpão do trator. Cá, o Cão e Marcos foram para a frente da casa, onde João podia ouvi-los choramingando:
“Não se preocupe, eu vou cuidar de você e da sua mãe. Aquele homem não vai te aterrorizar. Prometo que nada de ruim acontecerá com você.”
“Promete?”
“Claro. Só não se preocupe, e vá brincar enquanto cuido de vocês.”
A garota correu para o Pomar com seu Cão, provavelmente indo ao celeiro para ver o milho.
O sol queimava no horizonte, alaranjado. Era quase tempo de se por. Quase imperceptíveis, inúmeras nuvens carregadas formavam-se no céu. Aquela seria outra noite infernal! João perguntou-se quanto tempo o velho levaria ainda para encher os tratores e acompanhá-lo até o posto de combustível.
Enquanto isso, os touros pareciam acordar, primeiro cantarolando, depois escalando para um grito desesperado.
“Odeio esse som.”, Marcos disse para si mesmo, ainda na varanda.
“Olhe pro céu, Marcos, e veja o tamanho da tempestade que tá chegando. Deveríamos fazer nossas malas e sair agora, antes que a tempestade chegue.” João andou até a varanda e observou a linda fazenda junto ao seu irmão.
Os trabalhadores ainda cortavam o milho sob as ordens de Stefano.
“E quanto aos Sylvesters?”
“Eles não são problema nosso. Você deveria parar de fazer promessas pr’aquela garotinha; promessas que você não pode cumprir. A única coisa com que você deveria se importar é com sua mãe, e terminar de levar as cinzas dela para a costa.”
Marcos ficou em silêncio por um momento, dizendo, finalmente:
“Essa é a sua promessa agora. Cuidei da mamãe mais do que o suficiente. Não devo nada mais a ela ou a você. Você deveria pelo menos terminar o que ela pediu antes de morrer. Quanto a mim, vou ficar em Esperança.”
João não conseguia acreditar no que ouvira, mas cansara de discutir. Ele nunca convenceria Marcos a abandonar aquelas pessoas.
Por que ele deveria? Por que João importava-se tanto com onde Marcos estava?
Seu irmão era um estranho, alguém que fez parte de sua vida há tanto tempo que qualquer forma de relacionamento era irrelevante. Marcos também era um chupim, e aquela era uma oportunidade para ele ter um teto sobre a cabeça.
Só restava a João fazer sua mala e ir embora.
A casa estava silenciosa, imersa em escuridão, pois nem o por do sol penetrava as cortinas de linho. Todas as luzes estavam apagadas, e não havia ninguém por perto. Parecia que aquela casa aconchegante se transformara em um caixão.
João limpou-se usando o jarro de água em seu quarto, deixando uma trilha de terra no chão e nas toalhas; sujeira com a qual ele não se importou. Marcos limparia a bagunça como pagamento por escolher os Sylvesters ao invés de sua própria família.
Quando saiu ao corredor, ele notou que o céu havia se tornado preto, e a casa estava completamente escura. A única luz vinha do quarto de Gilberto, o mausoléu onde o fazendeiro esperava pela inevitável morte.
João se arrepiou como se atingido por um túnel de vento ao assistir a porta do fazendeiro entreaberta ao final do corredor.
Devo ir agora.
As escadas estão logo ali.
Só preciso atravessar o mezanino.
Mas as pernas de João não seguiam suas ordens. Era como andar dois passos para trás e voltar três.
Para frente e para trás.
Para frente e para trás.
O silêncio era terrível.
Como uma mariposa, João involuntariamente ia em direção à luz do quarto do fazendeiro.
Eu deveria ir agora, antes que alguém me veja andando confuso nesse corredor.
Por que eu me importo tanto? Por que eu não consigo não me importar com essa família?
Por que sinto tanta culpa olhando essa luz pálida vindo do quarto dele? Eu não o matei!
Não posso ir embora sem vê-lo.
Finalmente, João andou em direção à luz. Gilberto estava deitado na cama, inerte, pálido e sozinho. Seu peito não se movia e seus braços estavam jogados, sem vida, ao seu lado.
Não havia pulso.
O fazendeiro estava morto.
Por que estou chorando?
Por que sinto que perdi meu pai de novo?
João desistiu de tentar controlar seus sentimentos. Em vez disso, ele chorou e agradeceu ao fazendeiro pela hospitalidade, deixando o quarto em direção ao corredor escuro.
De repente, a luz fraca do quarto de Gilberto não era suficiente para João entender a geografia daquele espaço. Ele tentou a lanterna do telefone, mas não havia bateria. Por fim, João tateou no escuro e seguiu o rangido que seus passos faziam no chão velho.
O mezanino estava um pouco iluminado pelas luzes da cozinha.
Quem está na cozinha? Lilian? Miridiana? Marcos e a garotinha?
João não queria saber, não com o rosto molhado de lágrimas, então ele foi direto para a porta de saída, carregando sua bolsa de couro preta.
“Ocês estão indo?” - A voz de uma mulher veio de dentro da cozinha, e João foi forçado a andar para trás e enfrentar os seus olhos. Ele limpou o rosto e entrou na cozinha. Era Miridiana, parecendo uma morta-viva, um esqueleto pálido, mal conseguindo segurar uma xícara de café em suas mãos trêmulas.
“Sim, mas meu irmão vai ficar por mais tempo para ajudar você e Cá.”
“Ah, ele não precisa. Vamos sobreviver a isso, nóis sempre sobrevivemos.”
“Ah, bem. Foi o que eu disse ao Marcos, mas acho que ele é…” João não podia falar, mesmo que as palavras estivessem na ponta da língua, ele nunca falaria o que tinha pensado… acho que Marcos é um homem melhor do que eu. Por fim, João havia aprendido muito mais sobre Marcos nos últimos dois dias do que durante uma vida toda.
Miridiana quebrou o silêncio:
“Queria que Gil estivesse aqui pra falar. Eu não sou boa com palavras, mas desejo uma boa viagem.” Ela se voltou para a pia, olhando para os azulejos, e bebeu da caneca, trêmula.
Era noite lá fora. Contudo, João podia ver a fazenda facilmente com os refletores ligados. Os homens ainda trabalhavam nas plantações como formigas, mas João estava paralisado.
Talvez Marcos esteja certo, e eu seja um filho da puta egoísta.
Na varanda, respirando lentamente, João relembrou todos os eventos críticos de sua vida, tentando entender o momento em que ele passou de herói a vilão em sua própria história.
Até que um grito vindo dos campos de milho acordou-o.
João largou a bolsa e correu em direção à plantação, desesperado, com medo de que algo tivesse acontecido a seu irmão. No meio do caminho, João viu Feit saindo da plantação coberto de sangue, jogando todo o milho da carriola no chão. Em seguida, Marcos e um mineiro carregaram Stefano para fora do campo. Ele gritava enquanto seu pé direito sangrava como uma torneira aberta.
Aquele filho da puta teve o que merecia no final das contas!
“O que aconteceu?” - João gritou, a poucos metros de distância, incapaz de controlar o sorriso malicioso em seus lábios.
“Precisamos parar o sangramento, me dê seu cinto.” - Marcos disse.
“Meu cinto?”.
“Dá logo a porra do seu cinto!”
Stefano gritava.
João desafivelou o cinto e correu para mais perto a fim de entregá-lo a Marcos, que usou-o para amarrar a perna de Stefano e estancar o sangramento.
“Precisamos do Padre Octaviano! Vou pedir pro Tonho ir buscar ele com o caminhão.” Feit gritou e foi embora.
“Sinto muito!” - outro mineiro veio do milharal, gritando sua culpa.
“Ei, você! Pare de chorar e me ajude a levar Stefano para dentro. Ele é muito grande para o carrinho de mão.” - Marcos ordenou.
“Marcos, como posso ajudar?” - João perguntou, desorientado, mas sorrindo.
O rosto de Marcos estava coberto de um sangue preto. Ele olhou para o irmão, com ódio no olhar, e disse:
“Você já fez o suficiente. Você não estava indo embora?”
Marcos e um mineiro carregaram Stefano para dentro da casa.
“E o meu cinto? É couro de jacaré!” - João gritou, mas ninguém respondeu.
Miri assistia a tudo da varanda, cobrindo sua boca, em pânico ao ver o sangue derramando em sua casa.
Os touros gritaram mais alto do que nunca.
João nunca admitiria, mas ele genuinamente queria ajudar. Talvez para provar a Marcos que ele não era tão ruim no fim das contas. Enfim, não havia mais nada a se fazer, então João foi em direção da casa para pegar a bolsa de couro que havia deixado na varanda.
O motor do caminhão de Tonho rugiu.
E tudo pareceu estar em câmera lenta.
João se inclinou para pegar a bolsa e pode ouvir o caminhão derrapando na curva atrás do bosque. Os holofotes refletiam na estrada como em um palco de um teatro.
Havia algo no caminho.
Uma garotinha.
Miri apareceu na varanda e gritou com todo o ar de seus pulmões:
“Cá, saia da estrada!”.
Tudo era confuso. No começo, João não conseguiu compreender o que estava prestes a acontecer. Tonho, que provavelmente estava com pressa para pegar o Padre Octaviano, dirigia descontroladamente e não vira Cá no caminho.
O coração de João parou quando ele entendeu a desgraça iminente.
Seus olhos se abriram e suas pupilas se tornaram dois faróis.
Instintivamente, João jogou sua bolsa ao chão e correu o mais rápido que pode em direção à garota.
Mas Cá estava muito longe.
Muito longe.
O caminhão atingiu a garotinha sem cerimônias.
E os touros choraram ainda mais.
O pequeno corpo de Cá permaneceu para sempre no ar.
Até que espatifou-se no chão.
Havia sangue por toda parte.
O caminhão de Tonho derrapou ruidosamente, correndo para fora da estrada.
Havia gritos por todo lado.
O caminhão quase capotou, mas finalmente parou, lançando uma fumaça imunda de freios, pneus e motores.
Finalmente, João chegou até a garota.
Cá estava deitada na estrada, coberta de sangue.
João ajoelhou-se, tremendo, tentando limpar o sangue e a sujeira do rosto dela.
Quando o pai de João morreu, os policiais disseram que um caminhão tinha atingido Paulo enquanto ele tentava resgatar Marcos de sua picape em chamas. Disseram que Paulo não viu o caminhão chegando e, provavelmente, não sentira nenhuma dor. Ainda assim, João sempre imaginou aquela cena: seu pai tentando alcançar dentro da caminhonete, lutando contra o fogo para salvar o próprio filho. Um motorista bêbado dormiu ao volante e só acordou com o sangue em seu para-brisa.
A imaginação de João nunca conceberia uma realidade como aquela. A ficção nunca será mais trágica do que a realidade.
Os olhos de Cá estavam confusos. Ela olhou de volta para João, implorando por sua vida. Eram os olhos de Paulo; e eram os olhos de Duda, perplexos, tentando entender o porquê de suas vidas estarem prestes a acabar.
O peito de Cá parou de se mover.
E, finalmente, os touros pararam de chorar.






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